Aparecido Raimundo de Souza
UM
Foi um encontro, aliás, uma
trombada casual, muito ligeira, num dia em que faltou luz no prédio comercial
onde o Eduardo e a Fernanda trabalhavam. Ela descia afoita, para um lanche de
quinze minutos na padaria da esquina. Ele subia para o sexto piso, onde possuía
um estúdio de fotografias.
DOIS
Na pressa, Fernanda jogou
longe uma caixa repleta de envelopes que o rapaz carregava com cuidado
especial. Se sentindo culpada pela trombada inesperada e, consequentemente,
vendo o desespero do moço para apanhar os invólucros que se espalharam, se
abaixou, solícita, e o ajudou a recolher os pertences.
— Perdão, perdão. Nossa, como
sou desastrada. Não era intenção...
TRÊS
Eduardo, de cócoras, ia
recebendo um a um os envoltórios e os colocando de volta na caixa, ao tempo que
jogava a culpa para si próprio:
— Não há o que perdoar. Eu é
que não olhava pra frente. Vinha com os pensamentos muito, muito longe.
Viajava. Deixa pra lá. Machuquei você?
QUATRO
Passando das palavras
imediatamente à ação depositou num canto os documentos — na verdade negativos
de filmes — e acariciou o braço de Fernanda. Havia um minúsculo esfoladinho e
brotava um filete pequeno de sangue.
—Está doendo?
Fernanda meneou a cabeça de
modo negativo.
— Desculpe.
CINCO
Os olhos de Eduardo, nesse
instante, ficaram muito próximos da garota. Os lábios, perto demais, pareciam,
na realidade, querer se juntar num beijo de intensidade voraz. Eduardo,
contudo, era tímido para essas coisas do amor. Fernanda, por sua vez, nunca
havia experimentado um trocar de salivas apaixonado, nem sentido um friozinho
na barriga, como o que sentia naquele momento.
Não fosse um sujeito barrigudo
com duas crianças pedir passagem, certamente os rostos de ambos teriam se unido
no mesmo calor da emoção que os envolvia em cálida ternura.
— Você não me disse seu nome.
— Não! Sou o Eduardo.
SEIS
Ela se abriu num sorriso largo
e meigo.
— O meu é Fernanda. Qual é o
seu andar?
— Sexto, seiscentos e quatro.
— Décimo segundo, mil duzentos
e um.
— O que você faz no seiscentos
e quatro?
— Sou fotógrafo. E você, no
mil duzentos e um?
— Secretária de um consultório
dentário.
Ficaram em silêncio por alguns
minutos.
— Quer saber de um segredo?
Estou precisando, não é de hoje, passar a mão em mim e fazer uma visitinha a
uma cadeira de dentista. Meu sorriso anda meio desfalcado. Seu patrão por acaso
é muito careiro?
— Não é patrão, é patroa. Boa
de jogo. Faz qualquer coisa para segurar um cliente. A propósito: você me disse
que é fotógrafo?
— Disse e confirmo.
— Lembrei-me de um detalhe
interessante. Veja só como são as coisas. Mamãe, dias atrás, me disse que vai
mandar fazer um book e me dar de presente no dia do meu aniversário.
— E quando é?
SETE
— Segredo. Não posso
revelar...
— Nem pra mim?
Eduardo e Fernanda continuaram
a jogar conversa fora e a trocar pequenos afagos e carícias. Pareciam colados
no piso frio daquele lance de escadas. A pressa se dissipara como por encanto.
— Verei você de novo?
— Claro! Diga onde e quando?
— Calma! Dá pra mim o seu
telefone?
— Não posso...
— E por que não?
— Se o der, ficarei sem.
Um sorriso cheio de graça e
esplendor bailou, iluminado, no rosto dos dois jovens.
— Então, me dá só o número?
— Só se você me der o seu
antes.
— Certamente que sim.
OITO
Quase Fernanda perde a hora de
voltar ao serviço. Eduardo também se esqueceu de tudo, até das clientes que o
esperavam na sala. Subiram juntos, vagarosamente, agarradinhos um no outro,
trocando palavras melosas.
— Eu fico aqui. Não quer
chegar? Um cafezinho, ao menos?
— Meu tempo esgotou. Amanhã,
tudo bem. Se os elevadores estivessem funcionando...
— Olha só como as coisas
acontecem na vida da gente. Graças a uma súbita falta de energia acompanhada de
uma ligeira colisão de corpos, você cruzou o meu caminho.
— Não foi bem um caminho, mas
uma escada enorme...
— Que me fez ficar
literalmente preso nos seus degraus.
NOVE
Dia seguinte, voltaram a se
ver e a se falar. Desta vez, não no interior do edifício, ou no lance de
escadas onde tudo começou, mas num restaurante aconchegante, perto dali, com
música ao vivo e até uma garrafa de champanhe, para comemorar.
DEZ
De mãos juntas, rostinhos
colados, corações batendo descompassados, iniciaram um romance bonito que,
meses depois, acabou, realmente, em namoro sério, oficializado na casa dos pais
dela, com direito a troca de alianças, presentes, bolo, muita cerveja,
churrasco e uma recepção inesquecível para confraternização dos parentes,
amigos mais chegados e o anúncio, em primeira mão, da vinda de um lindo
bebezinho.
— Vai ser um menino.
— Qual o quê! É menina. E será
linda como a mãe...
ONZE
Foi um encontro, aliás, uma
trombada, um esbarrão casual, muito ligeiro, num dia em que faltou luz no
prédio comercial onde o Eduardo e a Fernanda trabalhavam. Ela descia afoita,
para um lanche de quinze minutos na padaria da esquina. Ele subia para o sexto
piso, onde possuía um estúdio de fotografias.
DOZE
Com esse casal, os desígnios
de Deus seguem em frente. A história se repete e haverá de se renovar,
indefinidamente. Na verdade, é o milagre da vida, através do seu cotidiano,
dando continuidade ao essencial, promovendo a sua parcela de felicidade para
que o dia a dia das pessoas não passe como o caracol que se desfaz em baba, ou
como o feto abortivo que não viu a luz do sol.
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(COMO OS DEMAIS QUE FOREM PRODUZIDOS), SERÁ PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS
SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM NOSSO PRÓXIMO LIVRO “LINHAS MALDITAS” VOLUME
3.
Título
e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 23-3-2017
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