terça-feira, 28 de março de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Sinuca de bico

Aparecido Raimundo de Souza

I
Tramontino Brandão e mais cinco companheiros foram convidados para almoçar na casa do Zé do Pagode. Era aniversário do Carlinhos Salsicha e a data nunca passava em branco. Aliás, de nenhum deles. Sempre que havia festa, a turma se reunia e comemorava. Nessas ocasiões, a bagunça geralmente varava a noite. Desta feita, o local escolhido foi a residência do Zé do Pagode, por ser um pouco maior e contar com um privilegiado quintal com piscina e quadra de futebol. Antes da hora aprazada já estava a rapaziada ao redor do barzinho que compunha uma das peças principais da construção à espera das guloseimas que prometiam ser sortidas.

II
Tramontino Brandão procurara um lugar singularmente dotado de bons ares para se sentar. Da confortável acomodação, observava o hall, a sala de leituras e TV, o corredor — no fim do qual uma escada em caracol ligava aos aposentos do pavimento superior — e, à esquerda, a copa. Colada ao fogão, uma branquelinha dos cabelos cor de mel preparava os comes e bebes. Atarefada com as panelas sobre as chapas, a gazela se deslocava de um lado para outro atropelando o que encontrava. Enquanto isso, o moço não sabia se prestava atenção ao grupo que tagarelava ou comia com os olhos o shortinho de lycra, muito curto que mostrava o lombo avantajado da serviçal. Assim, entre política, oscilações do câmbio, queda do real, subida do dólar e outras baboseiras, Tramontino Brandão ficava literalmente brancão, balançava a cabeça afirmativamente feito vaquinha de presépio. Suas vistas não desgrudavam da dança frenética que a gatinha imprimia às nádegas fazendo a boca sorver rapidamente cada gole da cerveja que despejavam em seu caneco.

III
Zé do Pagode, o anfitrião, parecia um rei. Ao lado, Pafunciano deglutia peito de frango desfiado. Luiz do Botão, juntamente com Carlinhos Salsicha (o que apagaria as velinhas), mais o Juarez da Birosca, incrementavam um sambinha de Noel Rosa batendo talheres nos cascos das garrafas. Uma zona! Tramontino Brandão continuava inerte, abobado, chumbado na cadeira. Grogue, o coitado roía as unhas em atitude descontrolada. A angústia maior se constituía em não poder agarrar literalmente aquela fêmea e desfrutar de sua companhia numa noitada inesquecível. O estranho é que a linda pérola loira tinha umas manias esquisitas. Ora metia o dedo no buraco do nariz, ora coçava aquele lugar secreto. A seguir, pegava nos alimentos. Esse procedimento em cadeia se deu com a salada de tomates, os bolinhos de carne e também com as laranjas que espremia para o suco. Tramontino Brandão assistia impassível e boquiaberto. Via a moça arrancar a sujeira do nariz e, sem o menor constrangimento, tocar nos pratos, nas panelas, nas batatas, na carne do churrasco...

IV
De outra, puxava o shortinho que entrava pelo rego da bunda ou chuchava os ouvidos. Embora existisse uma torneira ao lado, em nenhum momento chegou a dela se utilizar. Assim, entre emporcalhamentos e coçadas eróticas, quarenta e cinco minutos depois o tão esperado almoço ficava pronto. Bocas e barrigas famintas se acotovelaram para saudar os caldeirões fumegantes. Pratos e mais pratos foram servidos. Que abundância! Luiz do Botão danou a comer feito louco. Carlinhos Salsicha, nem piscava, parecia ter chegado da guerra. Pafunciano se deleitava com a salada de alfaces e tomates. Zé do Pagode largou a cachaça e se concentrou na jarra de suco. Juarez da Birosca engrenou nos bolinhos de carne e comentou que jamais comera salgadinhos tão gostosos e suculentos.

V
Tramontino Brandão, contudo, nada ousou. Sequer experimentou o bife à milanesa, seu prato preferido. Nessa confusão, o desditoso meteu a cara no vinho e na purinha do litro branco. Fez, na verdade, uma mistura desgraçada, verdade seja dita. Saiu da casa do Zé do Pagode carregado por quatro. Um vexame! Por essa razão, deixou de frequentar os lugares costumeiros. Não marcava presença às reuniões nem dava os ares da graça nos regozijos da vizinhança. No fundo, se sentia profundamente envergonhado, e mais, confuso consigo mesmo, pois, no íntimo, achava que deveria ter avisado seus simpatizantes sobre os modos pouco ortodoxos da incauta com relação à sua consequente falta de higiene e compostura.

VI
Algumas semanas depois, entretanto, o inesperado veio à tona e os seis amigos se cruzaram no Juarez:
— E aí, Tramontino? — perguntou Carlinhos Salsicha. — O que deu em você para fazer uma desfeita tão grande ao Zé do Pagode, ou melhor, a mim que...?
— Isso, Tramontino! — interrompeu Luiz do Botão. — Que mico você pagou! O que houve?
— Abra o jogo, homem de Deus! — insistiu Pafunciano.
— Desembucha logo! — obtemperou Zé do Pagode. — Seja o que for já rolou. Não estou com raiva de você. Aliás, nenhum de nós. Somos parceiros de velhos carnavais. Põe para fora, alivia essa tensão.
— Eu... eu... eu...

VII
— Vamos, criatura! — corroborou Pafunciano. — Não embroma. Bota aqui uma geladinha, ô Juarez e se junte à turma. Beberemos como velhos irmãos e companheiros para comemorarmos o seu retorno, Tramontino. E, é claro, saber tudo a respeito daquele malfadado almoço. Com certeza, brigou com a namorada.
— Decerto. Foi por isso que ficou de porre. Tivemos que levar você carregado, meu chapa. Isso, sem falar nos vômitos nojentos por todo o caminho...
— Mas diabos, meu chapa, conte de uma vez o que se passou?

VIII
Tramontino Brandão serviu um dos copos à sua frente. Virou numa golada só. Demorou alguns segundos para iniciar a narrativa.
— Enquanto vocês bebiam e conversavam... kikiki... eu observava a empregada do Zé...
— Que mulherão! — lembrou Carlinhos Salsicha. — E que comida!
— Credo! Você já...?!
— Não estou falando disso, seu tarado! Estou me referindo à comida... a comida que ela faz. É daqui!
— Os bolinhos de carne, puxa uma delícia! — retrucou Luiz do Botão.
— É... eu sei... eu sei...
— E por que não os provou?
— Querem mesmo saber? Não vão ficar zangados? Pois eu conto.

IX
Tramontino Brandão relatou, então, detalhe por detalhe, como as coisas aconteceram, sem omitir uma vírgula. Ao final da sua curta exposição, notou pelos semblantes que os ânimos estavam revoltados, aliás, revoltadíssimos. Percebera mais: havia metido os costados numa sinuca de bico.
— E você não deu nem um toque na galera?
— Deixou a gente comer meleca do nariz daquela piranha?
— E eu que mandei brasa na salada!

X
Partiram os cinco, para cima do coitado. Não houve quem pudesse segurar os enlouquecidos. Tramontino Brandão, sem saída, entrou na porrada feia. Teve que ser carregado às pressas. Só que, desta, não por bebedeira, nem amparado pelos amigos, mas por populares que passavam na rua. Ficou na salmoura, internado, com a cara amassada e algumas costelas quebradas quase dois meses na enfermaria do hospital.
     

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Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Interlagos, São Paulo – diretamente do “Lollapalooza”, 28-3-2017

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2 comentários:

  1. Pois é , o velho ditado. Quem vê cara , não vê coração
    Geralmente se dá mal
    José Manuel

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  2. Texto excelente, no nosso dia a dia, somos todos um pouco, Zé do pagode, Carlinhos Salsicha, etc, tudo que é manuseado pelas nossas mãos, é anti-higiênico, nas padarias, nas pizzarias, restaurantes, enfim ninguém que trabalha, que tem horários a cumprir, não vai perder tempo lavando as mãos toda hora, se analisarmos, deixaríamos de comer muitas coisas, sempre teve e terá um Tramontino Brandão que tudo vê, e nada fala, mas como diz o ditado, "o que olhos não vêem o coração não sente", nesse caso a boca kkkkk. Parabéns Aparecido

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