Alberto Gonçalves
Há dias, Cavaco falou e não evitei certa
saudade. Não é saudade do homem. É saudade de alguém, ou de alguma coisa, que
não pertença à desgraceira que hoje temos.
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Cavaco Silva, foto: Miguel Silva |
Na verdade, os novos censores
exibiram vasta incapacidade em perceber os exatos livrinhos da “polémica”,
conjuntos de exercícios e passatempos destinados a criancinhas de tenra idade.
Conforme Ricardo Araújo Pereira mostrou no Governo Sombra, as edições “para o menino”
e “para a menina” são rigorosamente iguais, exceto pelas ilustrações, assinadas
por autoras diferentes. No meio das semelhanças, os novos censores lá
conseguiram descobrir o rabisco de um labirinto cuja exigência era
aparentemente maior na versão masculina do que na feminina. Alguns dos novos
censores ainda estão a tentar sair de ambos.
Não estamos apenas no domínio
da infantilidade: a coisa já roça a perturbação mental. Ao longo dos séculos,
os partidários das repressões raramente se distinguiram pela inteligência. Os
novos censores distinguem-se pela assustadora falta dela. Essa deficiência
impele-os a farejar bibliotecas de creches, à cata de obras blasfemas para
alimentar fogueiras. Ia acrescentar que é melhor isso do que andarem na droga.
Mas a droga talvez envergonhe menos.
Naturalmente, o Grande
Escândalo da semana passada não está totalmente desligado do Grande Escândalo
desta: a “aula” de Cavaco Silva numa qualquer pândega do PSD. Cavaco falou e
resmas de nulidades – grosso modo, as mesmas que exigiram e aplaudiram a
recolha dos livrinhos – atropelaram-se para condenar o facto. Por definição, as
nulidades não deviam importar. Cavaco importa um bocadinho e, hoje, não só um
bocadinho. Durante os trinta anos em que influenciou o país, nunca me inspirou
particular simpatia ou antipatia, e frequentemente dei por mim a tentar
escolher se lhe preferia as óbvias virtudes ou se me repeliam as diversas
limitações. Há dias, porém, Cavaco falou e não evitei certa saudade.
Não é saudade do homem. É
saudade de alguém, ou de alguma coisa, que não pertença à desgraceira que hoje
temos, por ironia e fraqueza consagrada no final da presidência anterior. E o
principal mérito de Cavaco consistiu justamente em não “pertencer” – embora
pertencesse mais do que ele gostaria e do que os seus devotos julgam. Não sendo
o herói imaculado que estes imaginam, a comparação de Cavaco com os destroços
vigentes eleva-o ao céu. Apesar dos obstáculos, próprios e alheios, acabou por
se assemelhar a um estadista, emprestar à sua época uns vestígios de
razoabilidade e, ocasionalmente, ajudar a fingir que isto é um lugar
frequentável. As espantosas criaturas que, oficial e oficiosamente, agora
distribuem ordens não merecem um adjetivo que caiba num jornal familiar. E os
ansiosos escusam de vir lembrar os erros que Cavaco cometeu e os corruptos que
Cavaco promoveu: por um lado, a incompetência e a corrupção são essenciais à
política; por outro, não me interessa (e não preciso) argumentar que a
“nomenclatura” atual é especialmente incompetente ou corrupta. Ou demasiado
matarruana até para os padrões caseiros.
O nosso problema é a
“nomenclatura” ser – desculpem o jargão técnico – doida varrida. No último ano
e meio, sob as “notícias” amestradas do “milagre económico” e uma oposição muda
ou cúmplice, desatou-se a transformar o país remendado e periférico da praxe
num imenso seminário de atividades circenses. Deixo a cada um a tarefa de
decidir quem são os malabaristas e os palhaços. Certo é que, em circunstâncias
“normais”, o episódio dos livrinhos da Porto Editora não passaria de um
interlúdio cómico. Nas circunstâncias presentes, é uma peça trágica, repleta de
personagens inverossímeis e unidimensionais: os que, no ócio, inventaram um
pretexto para se sentirem ultrajados; os que, nos “media” e nas “redes”,
amplificaram o ultraje; os que, no governo, proibiram o ultraje. É claro que,
no tempo de Cavaco, tais personagens já se contorciam por aí. A diferença é
que, no tempo depois de Cavaco, as personagens mandam, e mandam sozinhas. Vale
que o caldo de toleima, prepotência, fanatismo, ignorância e poder absoluto
costuma correr bem, e tão bem para as meninas quanto para os meninos.
Nota de rodapé
Para quem não tenha habitado o
planeta durante o último século, o caso da Auto Europa é uma pertinente aula
prática sobre os propósitos, os métodos e as consequências do socialismo
“científico”. Há uma empresa multinacional relevante para as dimensões da
economia nacional, viável há muitos anos e com um apreciável currículo de
razoabilidade nas relações entre empregadores e empregados. Há uma proposta, ou
decisão, para alargar o expediente aos sábados, com troca de folgas e aumento
desproporcionado (no bom sentido) dos salários. Há um bando de preguiçosos
daninhos, de facto serventuários do PCP, que toma aquilo de assalto e promove
uma greve inédita. Há uma enxurrada de referências cínicas à “luta” e aos
“direitos”, aos “piquetes” e à “paralisação”. Há a suspeita de que, não tarda,
os donos da coisa cansam-se desta Venezuela à beira-Sado e vão produzir carrinhos
em paragens menos folclóricas. Há a certeza de que, logo que os trabalhadores
fiquem sem trabalho nem dinheiro (mas com sete dias livres por semana), a culpa
será do capitalismo selvagem. Há esperança de que, sobre os escombros e a
miséria, o PCP decrete a vitória das forças revolucionárias. Não há esperança
de que isto sirva de lição.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
2-9-2017
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