[…]
Sir Kenneth Bark esboçou uma
careta.
“A arte pertence a uma
categoria especial”, indicou. “Bem entendido, quando se confrontam com a
natureza, os seres humanos adotam uma postura contemplativa. Encaram o mundo
como ele é e ficam maravilhados com tudo o que veem que não os ameaça. Um
vulcão a expelir lava incandescente, uma leoa a cruzar a savana para caçar uma
zebra, uma tempestade que rasga a noite de relâmpagos, o céu estrelado a
cintilar na mancha profunda do espaço como pó em brasa.”
“E a arte?”
“A arte não é uma coisa que
exista naturalmente no mundo, trata-se antes de uma criação humana. A arte é o
produto da ação do homem quando ele tenta transcender a sua condição animal e passar de criatura a criador. A arte
surge quando alguém transforma um ato animal num objeto cultural que de pode
tornar sublime. Ao pintar uma cena na floresta, o homem torna-se Deus porque
cria numa tela a natureza, ao contar uma história num romance o homem torna-se
Deus porque cria no papel a vida de pessoas, mesmo que imaginárias.”
“O homem torna-se Deus? Não estará
a exceder-se?”
O curador girou a mão,
indicando tudo o que os rodeava.
“Deus é um artista, meu caro,
pelo que a arte é um ato divino”, sentenciou. “Deus é a entidade que tudo cria,
mas que permanece invisível por detrás da Sua criação, não lhe parece? Ora se
for ver a bem, um artista é isso mesmo. Um pintor pinta um quadro, mas o
criador permanece invisível por detrás da criação. O mesmo acontece com um
dramaturgo ou um romancista, por exemplo. Imagine que não éramos pessoas de
carne e osso, mas personagens de um romance.”
“Oh, que absurdo!”
“Pois, mas imagine por um
momento que essa era a nossa situação. Quem seríamos nós? Criaturas, claro. Mas
quem seria o nosso criador? O romancista que nos concebeu e que nos deu vida
nas páginas do seu romance. Ou seja, o romancista seria Deus porque foi ele que
tornou tudo possível e nos soprou a centelha da vida, embora permaneça
invisível por detrás de cada palavra que escreveu. No fundo a vida é um romance
e nós não passamos de personagens concebidas pelo supremo artista, Deus. É por
isso também que digo que a arte é o processo de divinização da condição humana.
O ponto de partida, contudo, é um ato animal.”
Kaloust imobilizou-se diante
de uma pintura de Sebastiano del Piombo que mostrava Jesus a ressuscitar Lázaro
no meio de uma multidão.
“Desculpe, não percebo. Está a
dizer-me que este quadro, por exemplo, resulta de um ato animal tornado divino?”
“Toda a arte tem como ponto de
partida um ato animal que se tornou objeto cultural e depois peça artística num
processo de divinização. No caso da pintura, ela nasceu do ato animal da caça. Depois
começaram a desenhar cenas nas paredes das cavernas para exorcizar os demónios
da caça e atrair o favor dos deuses. Ou seja, aculturaram o ato de caçar. Não
contentes com isso, aprimoraram essas cenas e criaram objetos artísticos como
as pinturas rupestres de Altamira. A cultura transformou-se assim em arte. Toda
a arte nasce de uma refinação da cultura, que por sua vez nasce de um ato
animal. Comer é um ato animal, fritar um bife é uma ação cultural, criar um
prato como o riz de veau et écrevisses en
chausson feuilleté parfumés à l’estragon, repleto de deliciosos sabores
sutis, é um gesto artístico. Está a ver?”
“O que me está a dizer é que a
arte é uma forma complexa de cultura?”
“Nem mais”, concordou Sir Kenneth com um gesto enfático. “Ter
frio é uma reação animal, tecer camisas de lã é um ato cultural, criar peças
quentes de haute couture é um gesto artístico. A noção de estética requer a
passagem para um estado superior da experiência humana, em que a mera
sobrevivência já não está em questão. Um homem esfomeado olha para um cisne que
desliza sobre as águas do The Serpentine, ali em Hyde Park, e vê comida, um
homem saciado observa a mesmíssima ave e sente-se deslumbrado com a elegância e
a graça natural do seu porte, com a alvura virginal das penas, com a curva
majestosa do pescoço, olha-a sem outro interesse que não seja satisfazer-se na
mais pura contemplação da sua beleza.”
O olhar de Kaloust percorreu a
fila de quadros que decoravam o salão onde se encontravam, enfeitiçado com a
riqueza cromática e de pormenor de quase todos.
“Ou seja”, concluiu o
visitante a balançar a cabeça pensativamente, “um objeto só se torna estético
num patamar superior da existência do homem.”
O curador do museu sorriu e
abriu os braços como se quisesse abraçar todo o museu.
“Bem-vindo ao mundo da arte.”
Digitação: JP
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