Paulo Tunhas
A linguagem é sem dúvida um
dos meios mais eficazes para nos fazer sair para fora da realidade e de fingir
que ela não existe. A forma como o Syriza o está a fazer é deprimente.
Uma palavra que vem à cabeça
quando se olha um pouco à nossa volta é: regressão. Na televisão, na ideologia,
em muito discurso político, um pouco por todo o lado, volta-se atrás nas formas
e nos conteúdos. Quase até à infância.
Comecemos pela ideologia. Sob
a capa da novidade e da juventude, movimentos como o Syriza representam um
retorno a formas arcaicas de pensar a sociedade e de lidar com a realidade. Há
sem dúvida razões apontáveis para que tais movimentos tenham sucesso. Entre
outras, a corrupção das elites políticas e, de uma forma muito significativa, o
abalo provocado pelo sentimento de perda de soberania a que a chamada
“construção europeia” conduziu muitos cidadãos dos Estados-Membros. Resta que a
regressão ideológica que se observa – simétrica, de resto, do utopismo de
muitos aspectos da dita “construção” – é deprimente e tendencialmente
catastrófica, já que corresponde a uma negação daquilo que Freud chamava
“princípio da realidade”.
O princípio de realidade
manifesta-se, entre outras coisas, no reconhecimento de uma realidade exterior
que não depende de nós; na aceitação de uma mediação entre o desejo e a sua
satisfação; na dúvida quanto à justeza da nossa representação das coisas; na
ideia de um compromisso entre os nossos desejos e as formas presentes da
sociedade; e, finalmente, na ideia de uma imparcialidade que nos permita
avaliar o acordo ou o desacordo das nossas representações com a realidade
exterior.
Ora, se há coisa que o Syriza
nos tem deprimentemente habituado desde a sua eleição, maximamente na figura do
inenarrável ministro Varoufakis, é a uma minuciosa e repetida violação do
respeito por cada uma destas condições. De nada são responsáveis; de mediações
(se se quiser, cedências) para a satisfação do desejo, nem ouvir falar;
nenhumas dúvidas quanto à justeza da sua representação do estado das coisas;
recusa sistemática de qualquer compromisso com a União Europeia; e,
consequentemente, absoluta incapacidade de toda e qualquer forma de
imparcialidade na apreciação da relação das suas propostas com a realidade.
Acrescenta-se a isto aquela
relação infantil com a linguagem, como se esta possuísse mágicos poderes. Já
não há troika, há “instituições” (já agora: porque não substituir “austeridade”
por outro nome?). A questão da linguagem é, de facto, tudo menos despicienda. A
linguagem é sem dúvida um dos meios mais eficazes para nos fazer sair para fora
da realidade e de fingir que ela não existe. Nessa função, em alguns casos ela
pode ser, é verdade, sublime. Noutros, infelizmente a maioria, pura e
simplesmente deprimente. Com o Syriza é deprimente.
Aquilo que vale para o Syriza
vale, sob forma mais suave, para vários outros discursos políticos. Sempre que
o apelo ao sonho e à utopia se tornam recorrentes, é sinal que os mecanismos
regressivos estão a funcionar. A realidade tende a eclipsar-se ou a
dissolver-se no próprio discurso, deixando, em termos práticos, de existir. O
discurso basta-se a si mesmo e, por um passe de mágica, pretende ser a prova da
sua própria justeza. É regressão mesmo. E é também deprimente.
Descansemos da política e
vejamos televisão. Mas o espírito da “Casa dos Segredos” parece ter tomado
quase conta de tudo, em particular dos telejornais. E a “Casa dos Segredos”
propriamente dita, como certamente concordará quem alguma vez a tiver visto, é
um exercício de regressão em estado puro. A vida do espírito reduz-se à sua
dimensão mínima. Uma pessoa apanha-se a ver ali corpos que falam, ou não falam,
sem que haja qualquer propósito de felicidade na coisa. Um pouco como na
pornografia.
Dizer isto não é, note-se, uma
condenação moral. Longe de mim “condenar” a “Casa dos Segredos” – ou a
pornografia. Ficando por esta última, há muitas coisas “pró” e “contra” que se
podem avançar sobre ela, e um dos mais ilustres filósofos morais do nosso
tempo, Bernard Williams, dedicou-se com atenção a discutir a questão. O tópico
é, de resto, um daqueles que continua a suscitar, nos filósofos que se ocupam
de questões éticas, debates vários. O problema da pornografia é que, no
culminar da regressão, infantiliza em absoluto. Para falar de novo como Freud,
reconduz-nos ao estado da “investigação sexual infantil”. É esse, e não os
problemas morais propriamente ditos, o seu problema central. De uma certa
forma, a pornografia é o modelo de toda a regressão. Mas, apesar de tudo, a
regressão pornográfica é matéria privada e dela não vem mal ao mundo. Cada um
faz como quer e está muito bem. Ninguém tem nada a ver com isso. Como ninguém
tem nada a ver com que se veja, ou não, a “Casa dos Segredos”.
O mesmo certamente não pode ser
dito das formas regressivas que agitam a sociedade. São regressões sublimadas,
mas são regressões à mesma. Tendem, por regra, à indistinção entre o desejo e a
realidade, ao onirismo, à imediatidade da satisfação, à ilusão da omnipotência
do pensamento, à convicção no poder mágico das palavras e outras coisas assim.
E muito mal costuma vir ao mundo de tudo isso junto. Quando os discursos
políticos e as acções políticas vão por esse caminho, uma coisa é certa: a
trapalhada vem aí.
E a trapalhada anda por aqui.
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