domingo, 24 de maio de 2015

“Ao pintar uma cena na floresta, o homem torna-se Deus”

[…]
Sir Kenneth Bark  esboçou uma careta.
“A arte pertence a uma categoria especial”, indicou. “Bem entendido, quando se confrontam com a natureza, os seres humanos adotam uma postura contemplativa. Encaram o mundo como ele é e ficam maravilhados com tudo o que veem que não os ameaça. Um vulcão a expelir lava incandescente, uma leoa a cruzar a savana para caçar uma zebra, uma tempestade que rasga a noite de relâmpagos, o céu estrelado a cintilar na mancha profunda do espaço como pó em brasa.”

“E a arte?”

“A arte não é uma coisa que exista naturalmente no mundo, trata-se antes de uma criação humana. A arte é o produto da ação do homem quando ele tenta transcender a sua condição  animal e passar de criatura a criador. A arte surge quando alguém transforma um ato animal num objeto cultural que de pode tornar sublime. Ao pintar uma cena na floresta, o homem torna-se Deus porque cria numa tela a natureza, ao contar uma história num romance o homem torna-se Deus porque cria no papel a vida de pessoas, mesmo que imaginárias.”

“O homem torna-se Deus? Não estará a exceder-se?”

O curador girou a mão, indicando tudo o que os rodeava.

“Deus é um artista, meu caro, pelo que a arte é um ato divino”, sentenciou. “Deus é a entidade que tudo cria, mas que permanece invisível por detrás da Sua criação, não lhe parece? Ora se for ver a bem, um artista é isso mesmo. Um pintor pinta um quadro, mas o criador permanece invisível por detrás da criação. O mesmo acontece com um dramaturgo ou um romancista, por exemplo. Imagine que não éramos pessoas de carne e osso, mas personagens de um romance.”

“Oh, que absurdo!”

“Pois, mas imagine por um momento que essa era a nossa situação. Quem seríamos nós? Criaturas, claro. Mas quem seria o nosso criador? O romancista que nos concebeu e que nos deu vida nas páginas do seu romance. Ou seja, o romancista seria Deus porque foi ele que tornou tudo possível e nos soprou a centelha da vida, embora permaneça invisível por detrás de cada palavra que escreveu. No fundo a vida é um romance e nós não passamos de personagens concebidas pelo supremo artista, Deus. É por isso também que digo que a arte é o processo de divinização da condição humana. O ponto de partida, contudo, é um ato animal.”

Kaloust imobilizou-se diante de uma pintura de Sebastiano del Piombo que mostrava Jesus a ressuscitar Lázaro no meio de uma multidão.


“Desculpe, não percebo. Está a dizer-me que este quadro, por exemplo, resulta de um ato animal tornado divino?”

“Toda a arte tem como ponto de partida um ato animal que se tornou objeto cultural e depois peça artística num processo de divinização. No caso da pintura, ela nasceu do ato animal da caça. Depois começaram a desenhar cenas nas paredes das cavernas para exorcizar os demónios da caça e atrair o favor dos deuses. Ou seja, aculturaram o ato de caçar. Não contentes com isso, aprimoraram essas cenas e criaram objetos artísticos como as pinturas rupestres de Altamira. A cultura transformou-se assim em arte. Toda a arte nasce de uma refinação da cultura, que por sua vez nasce de um ato animal. Comer é um ato animal, fritar um bife é uma ação cultural, criar um prato como o riz de veau et écrevisses en chausson feuilleté parfumés à l’estragon, repleto de deliciosos sabores sutis, é um gesto artístico. Está a ver?”

“O que me está a dizer é que a arte é uma forma complexa de cultura?”

“Nem mais”, concordou Sir Kenneth com um gesto enfático. “Ter frio é uma reação animal, tecer camisas de lã é um ato cultural, criar peças quentes de haute couture é um gesto artístico. A noção de estética requer a passagem para um estado superior da experiência humana, em que a mera sobrevivência já não está em questão. Um homem esfomeado olha para um cisne que desliza sobre as águas do The Serpentine, ali em Hyde Park, e vê comida, um homem saciado observa a mesmíssima ave e sente-se deslumbrado com a elegância e a graça natural do seu porte, com a alvura virginal das penas, com a curva majestosa do pescoço, olha-a sem outro interesse que não seja satisfazer-se na mais pura contemplação da sua beleza.”

O olhar de Kaloust percorreu a fila de quadros que decoravam o salão onde se encontravam, enfeitiçado com a riqueza cromática e de pormenor de quase todos.

“Ou seja”, concluiu o visitante a balançar a cabeça pensativamente, “um objeto só se torna estético num patamar superior da existência do homem.”

O curador do museu sorriu e abriu os braços como se quisesse abraçar todo o museu.

“Bem-vindo ao mundo da arte.” 
Título e Texto: José Rodrigues dos Santos, in “O homem de Constantinopla”, páginas 331 a 333. 
Digitação: JP

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