José Manuel Fernandes
Gostava de políticos que em
vez de prometerem fazer, prometessem deixar fazer. E gostava de um país onde os
cidadãos, em vez de pedirem tudo ao Estado, assumissem mais responsabilidades
no seu destino
1. Duas entrevistas. Pedro
Passos Coelho. António Costa. As linhas gerais de um programa eleitoral: o do
PS. Muitos jogos florais, troca de galhardetes, mas ao mesmo tempo um tremendo
vazio. O que os principais partidos portugueses nos têm para oferecer são
apenas graus diferentes, ou velocidades diferentes, de regresso ao passado, ao
país de antes da crise.
Com mais juízo e menos
desvarios, com formas diferentes de verem a retoma da economia, mas sem nenhum
dos dois partidos ter a ousadia, a frontalidade, de dizer aos portugueses que
não é possível voltar ao antigamente, aos “direitos adquiridos” para sempre,
aos contratos de trabalho para a vida, ao mundo previsível, protegido, mas
irremediavelmente falido, que foi o nosso até ao dia em que tivemos de pedir
ajuda externa. A questão não é apenas voltar ou não às grandes obras públicas,
ou fazê-las por “consenso alargado” – a questão, a grande questão, é que temos
um modelo de Estado, e um modelo de relacionamento do Estado com a economia,
que tem de ser profundamente revisto. Mas disso não se fala.
Gostava que nas próximas
eleições tivesse um programa no qual pudesse votar com entusiasmo e convicção –
já comecei a perceber que a escolha vai ser entre um mal maior e mal menor. Se
chegar a ser.
O que realmente gostava é que
se percebesse que a nossa crise não existe apenas por causa da bebedeira dos
juros baixos, da ineficiência de uma economia acomodada a um mercado interno
protegido e, claro, dos desvarios de José Sócrates. Ou da crise financeira
global que foi o detonador das crises que vieram depois. É altura de perceber
que isso não explica tudo. A nossa crise, como a crise que, em diferentes
dimensões e modalidades, tem persistentemente condenado as economias
desenvolvidas, com poucas excepções, a crescimentos anémicos, decorre de
mudanças radicais que exigem soluções também radicais.
2. O que não nos dizem é que,
mesmo depois de regressarmos aos mercados ou de retomarmos um crescimento
inevitavelmente tímido, continuamos sentados em cima de uma bomba relógio. Uma
bomba relógio política, pois é cada vez mais difícil – ou tem-se mostrado cada
vez mais difícil – tomar decisões estruturais e obter consensos alargados, uma
vez que grande parte das nossas sociedades, e da portuguesa em particular, está
entrincheirada em qualquer forma de benefício (das “rendas” dos grandes
oligopólios às “rendas” de casa subsidiadas de “pobres” para a toda a vida,
passando pelas “rendas” dos pilotos da TAP ou dos trabalhadores do Metro).
Difícil também porque a democracia tem dado lugar à demagogia, o realismo cede
terreno face ao populismo, a transparência tornou-se obsessiva bisbilhotice, o
debate político e ideológico parece ter-se transferido para o tribalismo
grotesco das redes sociais e das suas reacções viscerais (também lhes chamam
“virais”).
Todos sabem que temos uma
demografia extremamente desfavorável. Que isso vai fazer aumentar a pressão não
apenas sobre o sistema de pensões, mas também sobre a rede de serviços sociais
e de cuidados de saúde. Todos sabem que temos um Estado demasiado preocupado, e
ocupado, com micro-regulamentos que pretendem comandar tudo, impor normas a
tudo, tal como sabem que sempre que ocorre um desastre inesperado se vem logo
dizer que falta mais uma lei ou um novo regulamento qualquer.
Todos também sabem que somos
um país pequeno, uma economia muito aberta, e que enquanto não produzirmos e
exportarmos mais, qualquer aumento do consumo interno pode criar a ilusão de um
crescimento da economia, mas uma ilusão com dramáticas consequências no défice
externo e numa dívida que, considerando o Estado, as empresas e as famílias, é
a maior de toda a OCDE (370% do PIB, quase quatro anos de tudo o que produzimos
em Portugal).
Face a isto, o que nos propõe
o PS são paliativos, aspirinas que talvez ajudem a mascarar a doença, mas que
são ao mesmo tempo apostas arriscadíssimas que, podendo bater certo nas contas
dos macro-economistas, não batem certo com uma economia que necessita de se
abrir muito mais à concorrência e ao exterior.
Face a isto, o que até agora
nos tem proposto a actual maioria é apenas prudência, para não estragar o que
foi, goste-se ou não, um duro reajustamento, um penoso regresso aos números
positivos e a introdução de algumas (poucas, insuficientes) reformas.
3. Gostaria de algo bem
diferente. Gostaria de que ficasse claro que não é possível manter o nosso
modelo de Estado Social, em que o Estado não é apenas o garante das prestações
essenciais, mas antes o quase universal prestador de serviços. Gostaria que ficasse
claro que vamos ter de viver numa sociedade menos regulada, com todos os riscos
que isso implica, com todos os interesses que vai desalojar, mas também com
todos os benefícios que pode trazer – de serviços como a Uber à forma como a
Booking e outros sites permitiram a tantos portugueses que começassem a alugar
(e a recuperar) as suas segundas habitações.
Gostaria de ir muito, muito
mais longe. O Serviço Nacional de Saúde não pode continuar a ser visto como o
prestador universal de cuidados, até porque isso já é uma imensa mentira. A
escola pública não pode continuar a ser vista como um serviço do Estado,
centralizado na 5 de Outubro e condicionado pelo Mário Nogueira. O direito às
pensões não pode continuar a não ter limites, a obrigar o Estado a ser responsável
tanto pela imensidão de pensões miseráveis como pelo pagamento de pensões muito
altas para o nosso padrão de vida. Devolver a organizações da sociedade civil,
de todo o tipo, funções que o Estado tem chamado para si, não pode ser encarado
como uma forma de beneficiar amigos (como tantas vezes sucede), antes como o
único caminho possível para prestar melhores serviços de proximidade, sem
políticos a interferirem. A ideia de que “solidariedade social” é igual a
serviços público e que o resto é “assistencialismo” tem de ser vista como um
arcaísmo tão desajustado como a do “planeamento central da economia”.
O Estado, tal como hoje
existe, com as funções que tem, com tudo aquilo que se lhe pede – e em
Portugal, país que sempre gostou de se encostar ao Estado, chamasse-se ele Paço
Real ou Ministério da Economia, pede-se-lhe sempre mais mais – está condenado
continuar a consumir recursos crescentes se não alterarmos a sua lógica. Mas
como não voltará a haver o dinheiro fácil do passado, o Estado estará condenado
a uma espécie de “austeridade para mil anos”, como o Reich que Hitler imaginou
mas virado do avesso.
4. A reforma do Estado, de que
tanto se fala sem nada de substancial propor, tem de passar pela devolução de
funções que hoje estão concentradas nos ministérios e dependem de decisões
políticas, transferindo-as para níveis inferiores da administração pública,
para organizações da sociedade civil, para os cidadãos, as famílias, as
empresas.
Em muitos domínios isso passa
pela co-responsabilização dos cidadãos. Isso já começou a acontecer na área da
Saúde, onde a rede de seguros privados complementa, com vantagens mútuas, o
recurso exclusivo ao SNS. Isso pode acontecer em muito mais larga escala na
Educação. Isso tem de suceder, com urgência gritante, no sistema de pensões,
onde quem quiser um dia beneficiar de uma reforma mais elevada terá de
encontrar sistemas alternativos e complementares.
Hoje o Estado ocupa-se da
colocação de todos os professores do país, porque é isso que dá aos sindicatos
o poder que eles têm e porque é isso que é a cultura dos serviços e o destino
dos ministros. Não faz nenhum sentido. Tal como não faz nenhum sentido
continuarmos a falar numa espécie de “contracto colectivo” dos médicos, ou dos
professores universitários, a que damos pomposamente o nome da “carreiras
médicas” ou de “estatuto da carreira docente”, tudo naturalmente supervisionado
pelo político de serviço, que tanto pode ser competente e rigoroso, como pode
ser cobarde ou mesmo venal.
Hoje confunde-se informatização
dos serviços e desburocratização com lojas do cidadão, quando o que devia estar
a ser feito era a desmontar as toneladas de legislação que dizem como um
restaurante deve arrumar o seu frigorífico, quantos centímetros devem distar as
torneiras num balneário de uma fábrica ou a que altura se pode colocar um
interruptor eléctrico.
Infelizmente não é isso que
pede a gritaria das redes sociais, não é isso que está na cultura da
administração pública, não é nisso que pensam os políticos.
5. Um programa deste tipo não
é totalmente estranho ao que já está a ser feito, um passo aqui, outro além, em
países como o Reino Unido, a Holanda, a Dinamarca, a Suécia, mesmo a Alemanha
ou a Suíça. Não é uma utopia, é uma necessidade e, ele sim, exige uma visão
sobre o que será o nosso futuro, para onde caminhamos. Uma visão para a próxima
década e para as seguintes.
Eu não quero que os políticos
me digam que a sua visão é, por exemplo, a de um país mais qualificado – quero
que os cidadãos sigam por esse caminho porque têm os incentivos certos.
Eu não quero que os políticos
me digam que a aposta tem de ser nas empresas de tecnologia e criem para isso
novos subsídios (esse eufemismo para “rendas”) – quero que as empresas,
habituadas à concorrência, escolham o seu caminho, que tanto pode ser a
produzirem ostras como reinventarem uma indústria como a têxtil.
Eu não quero que a obsessão
pela igualdade acabe na limitação da liberdade de procurar ter sucesso – quero
sim que essa liberdade venha com mais responsabilidade e que o Estado se ocupe
mais e melhor dos que realmente necessitam em vez de tremer como varas verdes
perante a mais pequena gritaria de um grupo de “reformados VIP”.
Eu não quero um Estado que
cobra impostos sobre tudo o que se move; que quando isso não chega para
paralisar a actividade e limitar a ambição e a inventividade, cria logo novos
regulamentos; que, quando finalmente tem tudo controlado, passa a subsidiar o
que não funciona; e que acaba sempre falido, pois essa é a fatalidade de quem
tudo quer controlar.
6. Lenine dizia que ter
confiança é bom, mas que ter controle é melhor. Ora o que precisamos é de não
ser leninistas. No fundo, de não sermos tão socialistas, estatistas e
intervencionistas como somos, e de perceber que numa sociedade em tão rápida mutação
como é qualquer sociedade moderna, o Estado move-se sempre mais devagar e só
pode atrapalhar se quiser limitar e enquadrar todos os riscos e regular todas
as nossas vidas. Só que viver com mais riscos e mais responsabilidades é algo
que, quero crer, os portugueses acabarão por preferir a este pântano que se
eterniza.
Infelizmente, repito, não
creio que em Outubro tenha a possibilidade de votar num programa assim, de real
mudança, com visão de futuro, sem medo do passado.
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