Maria João Marques
Para Costa, o seu novo pregão
arrepiante – o de ‘estado empreendedor’ – não é ideológico; a ideologia,
aparentemente, só contagia pessoas de direita. A esquerda é imune a
preconceitos e ideologias.
‘Ideologia’ foi uma doença muito avistada
depois de PSD e CDS ganharem as eleições de 2011. Todas as pessoas decentes do
país se queixaram, nos primeiros seis meses do governo, que a malvada coligação
queria implementar um ‘programa ideológico’. Acabar com as golden shares foi
‘ideológico’, as alterações da legislação laboral tresandaram a’ ideologia’, o
corte dos subsídios aos funcionários públicos esteve carregadinho do pecado
‘ideológico’, os cortes na despesa nos vários setores (de resto menores do que
os negociados pelo PS no memorando de entendimento) foram o cúmulo da
‘ideologia’.
Com a proximidade das
eleições, os diagnósticos de ‘ideologia’ têm explodido outra vez nos lados dos
técnicos de saúde política afetos ao PS. Eu nos últimos tempos já fui objeto de
vários diagnósticos de ‘ideologia aguda’ no twitter, na sua forma declarada e
incurável. Às vezes pondero se não seria melhor (para bem da saúde pública)
acoplar uma campainha à minha carteira para avisar quem se cruza comigo desta
debilitante condição liberal em que me encontro.
Claro que quem se queixa de
‘ideologia’ tem muita razão. Os partidos – todos – apresentam uma ideologia aos
eleitores através das suas propostas políticas nos programas eleitorais; e os
eleitores decidem para que combinação ideológica estão mais virados em cada
momento eleitoral. Na verdade, os partidos menos ideológicos que por cá temos
são PSD (cuja grande ambição da maioria dos seus militantes é ser de esquerda)
e CDS (que ainda não se arrumou o socialismo beato).
Nem só os jovens costistas das
redes sociais e do comentário político se preocupam com este surto infeccioso.
António Costa também parece estar baralhado com o vírus ideológico. Por
exemplo, em março, Costa ‘criticou o Governo por ter abdicado de uma abordagem
pragmática na resolução dos problemas do país “por puro preconceito
ideológico”’ (Expresso, 17/3/2015). Em abril, Cassete Costa afirmou: ‘Este
Governo nunca olhou para os problemas de uma forma pragmática, olha sempre para
os problemas com preconceito ideológico’ (RR, 12/4/2015).
Lá está, o governo sofre de
‘preconceito ideológico’ e não toma a dose diária recomendada de pragmatismo.
Bom, eu, que sou picuinhas na
hora de os governantes e autarcas usarem o meu dinheiro pago em impostos,
começaria por aplaudir que nem toda a gente sofra desta estirpe de pragmatismo.
Aquela que ditou, por exemplo, que Costa permanecesse largos meses recebendo o
ordenado de presidente da câmara municipal de Lisboa enquanto passava os dias
em campanha para as primárias do PS (no dia de setembro do ano passado em que
Lisboa inundou, Costa filmou-se a festejar em Coimbra) ou, a seguir, a
desgovernar o seu partido.
Em todo o caso agradece-se que
Costa nos informe que, para si, antes da ideologia está o pragmatismo. Deve ser
por isso que fez parte dos governos que mais privatizaram (os de Guterres) e
que agora tenha discurso semelhante ao do PCP nesta matéria e provavelmente vá
apoiar o candidato presidencial Sampaio da Nóvoa, que vê carinhosamente uma
banca nacionalizada. Ou que tenha apoiado João Cravinho quando ofereceu uma
porção da TAP aos pilotos, apoiado Sócrates quando defendeu a privatização e
agora fale da TAP como se houvesse solução além de a vender ou de a deixar
morrer de morte lenta. (Aí, sim, a TAP morreria de ideologia – a socialista.)
Mas regresso à ideologia. Para
Costa, o pregão arrepiante que tentou colar nas últimas semanas – o de ‘estado
empreendedor’ – não é ideológico; a ideologia, aparentemente, só contagia
pessoas de direita. À esquerda a política é imune a preconceitos; a direita
endiabrada já devia saber que o padrão é o socialismo. Curioso. Defender um
estado concorrente desleal das empresas (pelos meios mais abundantes que tem,
por ser o legislador e o regulador), sufocando a iniciativa privada e criando
empresas cujo objetivo é agradar à tutela em vez de aos clientes, para mim é o
paradigma de ‘preconceito ideológico’. Preconceito, de resto, mais de colheita
PCP do que do PS de Guterres e até de Sócrates.
Propor – como parece ser o
caso, que Costa não vê necessidade de nos elucidar – aumento de IRS (seja via
aumento da taxa ou via diminuição das deduções, vai dar ao mesmo) para os escalões
mais elevados, quando Portugal já tem uma progressividade fiscal muito
acentuada, e a nossa carga fiscal já está além de qualquer razoabilidade e
justiça e moralidade, para mim ultrapassa ‘preconceito ideológico’: já cai na
categoria de ‘saque assumido à classe média’. Porque – como de costume – quem
vai pagar mais impostos não são só os ricos (são muito poucos), mas sim os que
ganham uns exorbitantes 1200€ mensais.
Vendo António Costa e as suas
propostas, reparo que os meus médicos têm razão. Afinal a ‘ideologia’ e os
‘preconceitos ideológicos’ podem ser mortais (para a economia e para a decência
política, pelo menos). Em todo o caso, antes sofrer de ‘ideologia’ que padecer
de ‘pragmatismo’.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
28-5-2015
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