Alberto Gonçalves
Os portugueses querem levar a vidinha sem
sobressaltos, maçadas e vergonha na cara, promessas em que, por exemplo à
imagem de Salazar, a esquerda é exímia. Falar-lhes de liberalismo é um luxo
inútil.
À revelia dos meus princípios
(é verdade, tenho dois ou três), há oito dias participei num encontro público.
Em primeiro lugar, porque se realizou a escassos minutos de minha casa e a
minha preguiça tem limites. Em segundo lugar, porque os organizadores são
pessoas que estimo e detestaria desapontá-las. Em terceiro lugar, porque o tema
era a conversão dos portugueses ao liberalismo e sou um devoto de causas
perdidas e esotéricas.
Apareceram dezenas de
curiosos, dos 17 aos – faço uma estimativa – 77 anos, talvez metade dos
liberais disponíveis no país. Discutiu-se imenso. Não se chegou a conclusão
nenhuma. Sobretudo, não saiu dali a sombra de um partido, um movimento, uma
comissão, uma “iniciativa” sequer. É escusado acrescentar que a coisa correu
maravilhosamente.
Apesar da retórica oficial e
oficiosa em sentido contrário, gostar da liberdade não é para todos. Por cá, de
resto, é para muito poucos. Há séculos que filósofos, pensadores e génios
diversos tentam capturar, com rede ou zagalote, a “identidade” pátria. Eu
descobri-a numa reportagem de “telejornal” sobre a eventual proibição de fumar
em carros particulares na presença de menores. Inquirido a propósito, enquanto
fumava ao volante com o filho no banco de trás, um indivíduo declarou-se
irredutivelmente a favor da putativa lei. Ou seja, aquele portento de cidadão
apenas esperava que o Estado o impedisse de cometer um comportamento que ele
próprio achava condenável. E ele próprio não via nada de condenável nisso.
É natural. Inúmeros compatriotas
esperam pelo Estado para quase tudo: a regulação de condutas, um “apoio”, um
“jeitinho”, um abrigo, um ralhete, uma norma, um conforto, um emprego, o que
calhar. Sem aval superior, nós – e por “nós” entenda-se a população quase em
peso – não existimos. Pior ainda, desconfiamos que não somos dignos de existir.
Não me canso de repetir, ou, para ser sincero, canso-me bastante: os
portugueses são crianças, genuinamente desprovidas de um pingo de autonomia e
para cúmulo satisfeitas com a situação. Às vezes resmungam? Claro que sim, já
que é dever das crianças resmungar até que as devolvam à ordem ou lhes ofereçam
o Cornetto de morango.
Esta semana, os dois
principais animadores do encontro acima referido, o Telmo Azevedo Fernandes e o
Vítor Cunha, assinaram no Observador artigos acerca da possibilidade de um
liberalismo português. Começo pelo artigo do Telmo,
que admiro pela inteligência e de que discordo pelo optimismo. Resumindo
demasiado, o Telmo defende “a superioridade moral da defesa das liberdades
individuais por contraponto a qualquer das alternativas ideológicas
existentes”. Aqui, está evidentemente certo. Em simultâneo, defende ser
possível convencer as gentes dessa superioridade. E aqui está infelizmente
errado.
Os portugueses não são avessos
à liberdade por desconhecerem os respectivos benefícios. Os portugueses são
avessos à liberdade por conhecerem as respectivas desvantagens – e as vantagens
da atitude oposta. Na medida em que deposita o destino nas mãos de cada um, a
liberdade implica responsabilidade, risco e uma trabalheira desgraçada, em suma
exatamente aquilo que o português evita, ou procura evitar, ao roçar-se
diligentemente no Estado.
Menos esperançado que o Telmo,
e para o final de um texto tipicamente admirável, o Vítor nota o ponto: “não basta o ‘argumento da superioridade moral do
individualismo’”. Mais esperançado que eu, supõe que “a demografia envelhecida
e a falência do Estado obeso farão mais pela necessidade de mudança que
qualquer ação que os liberais possam diretamente promover.”
É raríssimo divergir do Vítor.
Logo, aproveito a oportunidade. Mesmo velhos e falidos, duvido que os
portugueses culpem o socialismo mitigado ou demolidor em que intermitentemente
vivemos. A culpa da derrocada final, se não for do Espírito Santo, será como
sempre atribuída a outra força externa qualquer, empenhada por razões obscuras
no enxovalho deste valoroso povo. Em parte, aceita-se: quem não se sente capaz
de cuidar de si, não se sente forçado a assumir desvarios. O que não se devia
aceitar é que os principais culpados, os manhosos senhores que instigam a
dependência para reinar sobre multidões submissas, permaneçam invariavelmente
impunes.
Ignoro se os portugueses são
subordinados cá dentro porque Portugal o é lá fora ou se Portugal é subordinado
lá fora porque os portugueses o são cá dentro. Também ignoro se a ancestral
pobreza de espírito advém da ancestral pobreza material ou se acontece o
inverso. Porém, acredito que, privados de um vestígio de emancipação, somos
presa fácil de pantomineiros vários. Acredito que os pantomineiros de hoje
desceram a um descaramento inédito. E acredito que o descaramento dos que
mandam é proporcional à vassalagem dos que obedecem. Quando, no dia seguinte a
fingir comemorar a liberdade, a criatura que passa por primeiro-ministro
informa o parlamento de que não lhe deve satisfações e a proeza não implica
consequências, o nosso futuro é previsível.
Salvo os irremediavelmente
patetas, os portugueses sabem que a liberdade de “abril” é, no mínimo, um
bocadinho fraudulenta. E sabem que a “justiça social” é um eufemismo para o
controlo da economia por uns tantos. E sabem que a retórica das “causas” é um projeto
de lavagem cerebral. E sabem que o regime é propriedade de grupos, grupúsculos
e “personalidades”. Simplesmente não querem saber. Os portugueses querem levar
a vidinha sem sobressaltos, maçadas e vergonha na cara, promessas em que, por
exemplo à semelhança de Salazar, a esquerda é exímia. Falar-lhes de liberalismo
é um luxo inútil, uma excentricidade similar a descrever os méritos do
casamento aberto a um membro do Estado Islâmico. O tipo olha-nos com desprezo, vira
costas e regressa à rotina de cortar cabeças. Os portugueses não cortam
cabeças, mas não têm a sua em grande conta.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
29-4-2017
CARALHO,
ResponderExcluirAté respeito a opinião, mas a revolução LIBERAL POLITICAMENTE CORRETA JÁ ACONTECE NA EUROPA E NA AMÉRICA LATINA.