Vitor Cunha
Levanto-me às oito, visto
rapidamente os calções e a t-shirt do Che, calço as sandálias e corro para a
mesa de voto. Adoro o dia de eleições: representa a democracia em
funcionamento, a força fundamental que assegura a liberdade das pessoas. Dou à
senhora/senhor/outro presidenta/presidente/presidento o meu cartão de cidadão,
renovado há dias para o evento, só para ter a certeza que está tudo em ordem,
apesar do anterior ainda ter validade por mais três anos. Sei de cor o número
de eleitor, que confirmei com o serviço gratuito de SMS e reconfirmei com o
serviço online com o meu Magalhães. “Vitor Manuel Gaudêncio Parreira da Cunha”
— diz a senhora/senhor/outro presidenta/presidente/presidento —, “cidadão
número 10926724, eleitor B traço 1016”. Mostro a toda a mesa a tatuagem no antebraço,
a do número de cidadão com código de barras, perante a aprovação dos meus
superiores, um dos quais apresentando-me o boletim de voto, o cálice de onde
sorvo todo o meu poder de cidadão. Hesito em profaná-lo com uma cruz, tal o
êxtase de beleza que um simples boletim apresenta para um verdadeiro amante da
democracia. Faço a cruz, devagarinho, sem sair das margens, bissectrizes exatas
para uma escolha plena de consciência. Abandono o local de voto com a melancolia
de fim de Verão, a de que passarei mais um longo ano apenas à espera de repetir
o momento de dever e direito cívico.
Os meus filhos dizem-me que a
televisão não funciona. “Claro que não, hoje não há televisão! É dia de
eleições!” — respondo, bruscamente, que o papel de um pai é educar as crianças
para o que realmente importa na vida. “Não há futebol, não há handebol, não há
cinema, não há teatro, não há música, não há internet… até não há sol, o mar
está revolto, com bandeira vermelha mais aquela roxa das alforrecas… não há
restaurantes, não há bares, os piqueniques estão proibidos, não há postos de
gasolina abertos e as portagens são novecentas vezes mais caras… e, já agora,
digam à vossa mãe que não há sexo, graças a Deus, que hoje é dia de eleições”.
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias, 14-9-2017
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias, 14-9-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-