Helena Matos
A “coisa” calha a todos. Não adianta
acreditar que sobre nós ela não cairá. Vai cair. Agora. Ali à frente. E todos
os dias esta coisa viscosa cai sobre alguém. Hoje foi o dia do alfinete
racista.
“Um alfinete de peito utilizado pela Princesa Michael de Kent no jantar anual de Natal da Rainha Isabel II está a causar polémica. O acessório, com o busto de uma mulher negra, que enfatiza a escravatura, foi considerado de índole racista.”
Porque enfatiza o alfinete em causa a escravatura é um
mistério que os jornais não esclarecem mas isso também não
interessa nada. O que interessa é que a onda de indignação do dia hoje caiu
sobre a princesa de Kent. E todos os dias, mas mesmo todos, esta coisa viscosa
cai sobre alguém. É da sua natureza. Estão a ver aquelas coisas nojentas que as
crianças atiram às paredes? Sim, os pega-monstros. Vivemos rodeados deles.
Dessas massas informes que todos os dias renascem sob a forma de miasma que
invariavelmente cai sobre alguém.
Tudo parte de uma premissa que
não paramos para avaliar – “o alfinete racista” – para daí concluir um aleijão
moral de alguém, no caso da mulher que o usa. Hoje é um alfinete com a cabeça
de uma mulher negra que vale a quem o usa uma acusação de racismo. Mas porquê?
Se a princesa levasse um alfinete com a cabeça de uma mulher branca seria uma
supremacista branca? E se a princesa levasse um alfinete com um leopardo seria
uma apoiante da vida selvagem ou pelo contrário uma defensora dos circos e dos
zoos?
E se a princesa levasse um
alfinete em forma de sol, que é uma estrela masculina, estaria ela a excluir a
lua que é feminina (aqui fica feita a correção: o sol é uma estrela como bem
assinalou um leitor. Por conta dos leitores fica também a questão do género do
sol e da lua e das respectivas energias, assunto cuja transcendência me
ultrapassa por completo para mais num dia em que o meu problema é o custo da
energia para manter uma casa aquecida em Portugal). E se a princesa se virasse
para os mares e escolhesse uma joia a lembrar um búzio será que estava a
praticar um gesto de apropriação cultural em relação aos povos que usam as
conchas como joias? E se pelo contrário a princesa tivesse usado um escaravelho
será que os egípcios veriam nessa eleição uma referência à sua antiga
civilização e, portanto, uma defesa dos arqueólogos que levaram imensos artefatos
e joias do Egito para os museus da Europa? E se a princesa levasse uma flor
será que isso simbolizaria que os seus gostos são tão artificiais que à beleza
de uma flor natural prefere outra nascida das mãos dos ourives?
E se a princesa levasse um
alfinete em forma de cobra será que pretendia assustar alguém, pois como se
sabe há pessoas que ficam paralisadas ao ver répteis mesmo que figurados? E se
a princesa optasse por um alfinete com um sapo será que pretendia com tal
escolha mandar uma mensagem subliminar aos homens da sua família – príncipes,
portanto sapos – ou afugentar da festa os povos que não gostam de sapos? E se a
princesa escolhesse uma filigrana portuguesa será que esse seu gesto não
procurava reforçar a condescendência com que os ingleses nos trataram ao longo
dos séculos?
E se fosse um dragão que diria
a China? E já agora o Futebol Clube do Porto? E se fosse um trevo de quatro
folhas será que a princesa de Kent teria algo a ver com a Raríssimas?…
Dir-se-á que perante a
polémica o melhor será a princesa deixar de usar alfinetes. Mas quem pensar tal
coisa não conhece a natureza da coisa. Ela vai sempre abater-se sobre alguém.
Por causa da forma das joias ou pelo facto de se usarem joias. Pelo pechisbeque
ou pelo não pechisbeque. Pela roupa. Pelo cabelo. Por… não interessa.
O alfinete “racista” da
princesa de Kent é o reverso do quotidiano de inferno que construímos em nome
da tolerância. Tal como as sociedades que diziam querer atingir a igualdade só
geraram pobreza e desigualdade também esta agenda do politicamente correto está
a destruir o bom senso e a roubar-nos a liberdade.
Não há dia em que alguém não seja
acusado de racismo. O assédio ou o não partilhar dos valores da cartilha também
são fatores para que “a coisa” se abata sobre nós.
Como sempre acontece nos
tempos de intolerância, a ficção torna-se o refúgio possível, o campo do
autorizado. Não por acaso muitos dos heróis das séries de hoje vivem no tempo
dos vikings ou no não lugar das guerras pelos tronos de reinos que não sabemos
localizar. Pois só assim os guiãos são livres. Nesses reinos cheios de seres semirreais
as personagens podem amar, decidir, guerrear, escolher e fazer sem atender aos
problemas do género, da raça, do meio social, do que quer dizer o quê…
Claro que os comuns mortais
não têm joias. Mas a “coisa” calha a todos. Não adianta acreditar que sobre nós
ela não cairá. Vai cair. Está a cair. Agora. Ali à frente. Se me perguntarem o
que quero no Natal respondo já: um mundo em que esta gente do lobby da culpa vá
de férias. Ou que pelo menos aplique a si mesma o horário de trabalho da Autoeuropa.
Já agora, se vir um
pega-monstro no monte das prendas não o deite fora. Ponha-o ao lado em local
visível e pense que essa massa viscosa é o melhor símbolo do mundo que nos
rodeia.
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