domingo, 31 de janeiro de 2016

Ano MMXVI – Segundo Milésimo Décimo Sexto

Jacinto Flecha

Quando trabalhei no vigésimo quarto andar de um edifício, gostava de ouvir o ascensorista enunciar os andares onde ia parando: Quatôrzimo, dezessétimo, dôzimo, etc. Inicialmente soava estranho, um tanto hilariante, mas aos poucos os passageiros habituais se acostumaram com a novidade. Se o público dele não fosse tão limitado – digamos que ele tivesse sido, por exemplo, um desses gaiatos analfabetos, lançadores de moda na televisão – provavelmente estaríamos todos usando a ideia dele.

(Será que esse sujeito acha certo falar assim?)

Caro leitor, eu também sei que não é certo esse modo de falar. Por quê? Simplesmente porque as regras mandam falar de outro jeito (décimo segundo, décimo oitavo, vigésimo terceiro), nossa formação de numerais ordinais complica assim a nossa língua. Já não são muito fáceis – eu diria até que não são muito sensatas – quando vamos até o nonagésimo nono; mas você já escreveu ou falou ordinais superiores a cem? Então acompanhe-me na formação dos ordinais em alguns números “grandes”. Três dígitos: quadringentésimo trigésimo quinto (435º); quingentésimo quadragésimo oitavo (548º). Quatro dígitos: terceiro milésimo sexcentésimo octogésimo sétimo (3687º); oitavo milésimo nongentésimo nonagésimo segundo (8992º). Cinco dígitos: vigésimo oitavo milésimo setingentésimo nonagésimo terceiro (28793º). Você prefere que eu pare, ou devo continuar até os dígitos sexto, sétimo, oitavo, nono, décimo…? Cada algarismo ganha de presente pelo menos um ésimo, e o conjunto fica parecendo aqueles palavrões do alemão.

Existiram e ainda existem mundo afora muitas complicações com os números. Os algarismos romanos, por exemplo, cumpriram sua função de designar quantidades, e supõe-se que fossem entendidos por todos. Mas eram fáceis? Para começo de conversa, era necessário aprender a fazer contas com números antes de aprender os números. Parece um contra-senso, mas era assim que funcionava: o número 4 (IV) se fazia subtraindo 1 de 5; o número 8 tinha de somar 3 a 5 (VIII); o número 14 surgia subtraindo 1 de 5 (IV=4), e somando depois o resultado a 10 (10 + 5-1 = XIV).

Acho melhor descansarmos um pouco, pois a próxima tarefa é mesmo fazer as contas. Você já experimentou fazer contas usando algarismos romanos? Escreva dois números de sete ou oito algarismos como os romanos, e tente simplesmente somá-los. Bem entendido, sem recorrer aos arábicos como interface. Espero que consiga caminhar alguma coisa até o nosso encontro da próxima semana. Não é sem motivo que os contadores (guarda-livros) cobravam caro. Imagine com que facilidade os árabes, com seus ligeiros algarismos arábicos, passariam a perna nos romanos.

A língua francesa tem alguns resquícios desses complicativos, e não é fácil entender por que permanecem. Podem-se enunciar facilmente os números até 69. Daí em diante começam as contas internas dentro do mesmo número, como faziam os romanos: O número 70 é formado por 60 mais 10; seguem-se 60 mais 11, 12, 13 … 19. Para 80 você já precisa fazer uma conta de multiplicar (4×20=80); daí em diante são duas contas: esta primeira de multiplicar, mais outra para somar 1, 2, 3 … 19. Já pensei em sugerir aos franceses algo mais simples: Criar três palavras significando setenta (septante), oitenta (huitante) e noventa (neuvante). Mas a minha coragem teria de ser bem maior, para enfrentar uma declaração de guerra. Não seria a primeira vez que eles entoam Aux armes, citoyens! quando um alienígena ousa contestar a solução que um deles iMaginot; mesmo concordando que não solucionot, não facilitot nem melhorot.

(Qual seria então a melhor forma para os nossos ordinais?)

Nunca examinei atentamente o assunto, nem sequer tenho competência para estabelecer novas regras para nossa língua. Ela já não é português (o dos portugueses), e há quem trabalhe para não se tornar brasilês. Acho que a ideia do ascensorista não deve ser preconceituosamente descartada. Outra forma é a dos espanhóis. Já os vi comemorar alegremente um 53 aniversário, sem alterar em nada o numeral cardinal. Nós diríamos quinquasésimo terceiro, sem esquecer que a pronúncia exige um trema sobre o qüin, embora o trema tenha perdido o direito de manifestar-se por escrito.

Compensa passarmos a dizer aniversário 53, congresso 132? Uma mudança assim pode gerar consequências imprevisíveis ou desagradáveis, e não tenho qualificações linguísticas suficientes para avaliar nem decidir; mas no momento não acho despropositada a ideia.
Título, Imagem e Texto: Jacinto Flecha, ABIM, 31-1-2016

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