Jacinto Flecha
Quando trabalhei no vigésimo
quarto andar de um edifício, gostava de ouvir o ascensorista enunciar os
andares onde ia parando: Quatôrzimo, dezessétimo, dôzimo, etc. Inicialmente
soava estranho, um tanto hilariante, mas aos poucos os passageiros habituais se
acostumaram com a novidade. Se o público dele não fosse tão limitado – digamos
que ele tivesse sido, por exemplo, um desses gaiatos analfabetos, lançadores de
moda na televisão – provavelmente estaríamos todos usando a ideia dele.
(Será que esse sujeito acha
certo falar assim?)
Caro leitor, eu também sei que
não é certo esse modo de falar. Por quê? Simplesmente porque as regras mandam
falar de outro jeito (décimo segundo, décimo oitavo, vigésimo terceiro), nossa
formação de numerais ordinais complica assim a nossa língua. Já não são muito
fáceis – eu diria até que não são muito sensatas – quando vamos até o
nonagésimo nono; mas você já escreveu ou falou ordinais superiores a cem? Então
acompanhe-me na formação dos ordinais em alguns números “grandes”. Três
dígitos: quadringentésimo trigésimo quinto (435º); quingentésimo quadragésimo
oitavo (548º). Quatro dígitos: terceiro milésimo sexcentésimo octogésimo sétimo
(3687º); oitavo milésimo nongentésimo nonagésimo segundo (8992º). Cinco
dígitos: vigésimo oitavo milésimo setingentésimo nonagésimo terceiro (28793º).
Você prefere que eu pare, ou devo continuar até os dígitos sexto, sétimo,
oitavo, nono, décimo…? Cada algarismo ganha de presente pelo menos um ésimo, e
o conjunto fica parecendo aqueles palavrões do alemão.
Existiram e ainda existem
mundo afora muitas complicações com os números. Os algarismos romanos, por
exemplo, cumpriram sua função de designar quantidades, e supõe-se que fossem
entendidos por todos. Mas eram fáceis? Para começo de conversa, era necessário
aprender a fazer contas com números antes de aprender os números. Parece um
contra-senso, mas era assim que funcionava: o número 4 (IV) se fazia subtraindo
1 de 5; o número 8 tinha de somar 3 a 5 (VIII); o número 14 surgia subtraindo 1
de 5 (IV=4), e somando depois o resultado a 10 (10 + 5-1 = XIV).
Acho melhor descansarmos um
pouco, pois a próxima tarefa é mesmo fazer as contas. Você já experimentou
fazer contas usando algarismos romanos? Escreva dois números de sete ou oito
algarismos como os romanos, e tente simplesmente somá-los. Bem entendido, sem
recorrer aos arábicos como interface. Espero que consiga caminhar alguma coisa
até o nosso encontro da próxima semana. Não é sem motivo que os contadores
(guarda-livros) cobravam caro. Imagine com que facilidade os árabes, com seus
ligeiros algarismos arábicos, passariam a perna nos romanos.
A língua francesa tem alguns
resquícios desses complicativos, e não é fácil entender por que permanecem.
Podem-se enunciar facilmente os números até 69. Daí em diante começam as contas
internas dentro do mesmo número, como faziam os romanos: O número 70 é formado
por 60 mais 10; seguem-se 60 mais 11, 12, 13 … 19. Para 80 você já precisa
fazer uma conta de multiplicar (4×20=80); daí em diante são duas contas: esta
primeira de multiplicar, mais outra para somar 1, 2, 3 … 19. Já pensei em
sugerir aos franceses algo mais simples: Criar três palavras significando
setenta (septante), oitenta (huitante) e noventa (neuvante). Mas a minha
coragem teria de ser bem maior, para enfrentar uma declaração de guerra. Não
seria a primeira vez que eles entoam Aux armes, citoyens! quando um alienígena
ousa contestar a solução que um deles iMaginot; mesmo concordando que não
solucionot, não facilitot nem melhorot.
(Qual seria então a melhor
forma para os nossos ordinais?)
Nunca examinei atentamente o
assunto, nem sequer tenho competência para estabelecer novas regras para nossa
língua. Ela já não é português (o dos portugueses), e há quem trabalhe para não
se tornar brasilês. Acho que a ideia do ascensorista não deve ser
preconceituosamente descartada. Outra forma é a dos espanhóis. Já os vi
comemorar alegremente um 53 aniversário, sem alterar em nada o numeral
cardinal. Nós diríamos quinquasésimo terceiro, sem esquecer que a pronúncia
exige um trema sobre o qüin, embora o trema tenha perdido o direito de
manifestar-se por escrito.
Compensa passarmos a dizer
aniversário 53, congresso 132? Uma mudança assim pode gerar consequências
imprevisíveis ou desagradáveis, e não tenho qualificações linguísticas
suficientes para avaliar nem decidir; mas no momento não acho despropositada a ideia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-