Gabriel Mithá Ribeiro
“Os países nascidos da
descolonização ficaram comprometidos no seu desenvolvimento, em consequência:
da destruição causada pelas guerras; da retirada de populações; da fuga de
técnicos e do baixo nível das populações locais. Ficaram dependentes das
antigas potências colonizadoras, ou das grandes potências, EUA e URSS. A
submissão destes países aos interesses estrangeiros, desejosos de manter o
acesso a matérias-primas e de assegurar um controlo estratégico das antigas zonas
coloniais, deu origem ao neocolonialismo. Este tipo de domínio, considerado
responsável pelo subdesenvolvimento, foi condenado na Conferência de Argel, em
1973. Os países do Terceiro Mundo reclamaram uma nova ordem económica favorável
para poderem superar o atraso e afirmar a sua independência efetiva.”
Salvo detalhes acessórios, o
excerto ajusta-se ao parecer de um Comité Central ou a uma peça
político-ideológica pura e dura porque se orienta por teses maniqueístas com
enviesamento terceiro-mundista quando está em causa a interpretação de
fenómenos sociais e históricos intrinsecamente complexos. Acontece que são os
últimos que caracterizam as sociedades que ambicionam ser democráticas, livres,
plurais, heterogéneas, intelectualmente dinâmicas na relação consigo mesmas,
isto é, com o seu percurso histórico, com as suas referências identitárias, com
o seu sentido de pertença civilizacional.
Detalhando um pouco mais, o
excerto evidencia dois dos atributos que melhor definem os discursos
ideológicos: a seletividade no olhar sobre o real, isto é, a arte de se captar
apenas o que se quer ignorando o inconveniente; e a transformação
valorativa-moralista do que é ambivalente, por isso mesmo humano, em produtos
interpretativos que se limitam a fragmentar a vida vivida em carrascos ‘versus’
vítimas, exploradores ‘versus’ explorados, culpados ‘versus’ inocentes, bons
‘versus’ maus. Seria difícil encontrar vias mais eficazes para castrar
inteligências.
Mas não é pela carga
ideológica que a composição se aproxima do absurdo racional. Nesse campo é
quase perfeita. O absurdo reside na fonte de legitimidade em que se sustenta. A
citação é uma análise historiográfica, quer dizer científica e academicamente
legitimada, que concluí uma unidade didática de um manual de história do 12º
ano de grande divulgação em Portugal em utilização no ano letivo de 2015-2016.
Não do ano letivo de 1977-1978.
Num manual de história
devidamente certificado, como é o caso, a análise historiográfica assume valor
científico (a citada) precisamente por não ser confundível com as fontes
históricas de uma dada época (a matéria-prima, por exemplo, excertos de
discursos de Estaline, Hitler ou Mao Tsé-Tung). Muito menos se deve confundir
com um mero arrazoado opinativo (tipo conversa de café). E nada de substantivo
se alteraria se citasse os autores do manual escolar de onde foi retirado o
excerto, o título, o volume, a editora, o local de edição e a página. Noutros
manuais escolares de outros autores, de outras editoras, de outros níveis de
ensino e de outras disciplinas exemplos equiparáveis seguramente não faltarão.
Uma sociedade que ambiciona
ser mais justa e próspera deveria evidenciar preocupações mais do que mínimas
com o modo como são geridos os núcleos decisivos ao seu desenvolvimento, muito
em particular dos que condicionam o sentido dominante do pensamento coletivo.
Mais do que a liberdade de escrever este ou aquele artigo na imprensa, publicar
este ou aquele livro, defender publicamente esta ou aquela opinião, em
sociedades de ensino massificado o impacto social por excelência resulta do
modo como o poder tutelar do Estado se posiciona face à produção e regulação de
conhecimentos com significado para a vida quotidiana que, na atualidade,
resultam de compromissos entre as dimensões científica, académica e de senso
comum.
A massificação da
escolarização tanto pode gerar um tipo de estado que torna a sociedade que
tutela intelectualmente criativa e dinâmica e, por isso, mais justa e
desenvolvida; quanto pode gerar um tipo de tutela intelectual sobre os
indivíduos comuns tosca, castradora, autoritária, estéril, conflituosa. O
excerto do manual de história do 12º ano não deixa dúvidas sobre qual das
tendências domina a sociedade portuguesa que, por alguma razão, persiste num
longo ciclo em que não se consegue distanciar de um estádio endémico de
pobreza, frustração, instabilidade, crises identitárias ainda assim mitigadas
pelas vantagens de pertencer ao contexto europeu ocidental.
Sociedades dinâmicas e
prósperas são as que permitem que as mais variadas sensibilidades no domínio do
pensamento se manifestem, mesmo as mais extremadas. Os riscos que correm têm a
ver com a possibilidade dessas propostas extremadas serem materializadas, o que
resulta no empobrecimento ou na ameaça à vida coletiva. Todavia, tal risco
apenas existe quando o que é extremado invade e permanece no interior das
instituições de referência do estado, colonizando a partir daí o sentido da
vida social. Saber traçar e garantir a fronteira entre, por um lado, ideólogos
e ideologias de fação e, por outro lado, o funcionamento do estado é o que
permite diferenciar as sociedades prósperas das outras.
Por essa e todas as razões,
quando está em causa a gestão de conhecimentos sobre a condição humana ou sobre
fenómenos sociais e históricos intrinsecamente ambivalentes, o estado e
respetivos organismos existem para respeitar e fazer respeitar a sociedade que
tutelam sem pretensões de a ela se substituírem, orientando-se o mais possível
por princípios de neutralidade. Com mais rigor, pelo princípio da neutralidade
axiológica no sentido weberiano do termo que significa equacionar a hipótese
interpretativa inversa à que se defende desde que ambas sejam plausíveis (e,
acrescento, socialmente aceitáveis).
Não exigiria grande esforço
intelectual transformar o sentido do excerto do manual de história do 12º ano
numa retórica opinativa de sinal contrário também legítima. Não faltam
elementos factuais que comprovam que, desde que a história se fez história,
sociedades e países menos desenvolvidos (na saúde, na cultura escrita, na
ciência, na monetarização da economia, na indústria, na edificação de
infraestruturas materiais, na organização das instituições políticas e sociais,
nos hábitos quotidianos, no funcionamento do estado, na transformação
tecnológica, entre outros domínios) sempre retiraram vantagens significativas
de contactos com povos e países mais desenvolvidos.
Se o arrazoado dogmático pró
terceiro-mundista apresentado no manual de história do 12º ano é tão plausível
quanto a hipótese contrária, o facto da última nem sequer ser equacionada
constitui um sintoma da natureza pré-científica, semirracional ou simplesmente
ideológica com que em Portugal se procede à gestão do conhecimento social. Não
pode existir sintoma mais evidente de um estado capturado por interesses de
fação sejam eles ideológicos, corporativos, económicos ou de outra natureza.
Acrescento que o exemplo
citado está longe de ser acidental ou único. Nem seria necessário mudar de
manual escolar para tal conclusão. Poucas páginas antes, para explicar a
social-democracia europeia, isto é, o socialismo gastam-se três parágrafos de
pendor laudatório, num total de 29 linhas. Sendo manifesto o propósito
comparativo, para a democracia-cristã europeia, em Portugal o campo do PSD e do
CDS-PP, a seguir sobram dois parágrafos quase lacónicos que preenchem um total
de 13 linhas.
Estes indícios aparentemente
dispersos poderiam não ser significativos. O facto é que se inserem num rol de
sintomas que concorrem sempre num único sentido, atingem outras áreas do
conhecimento para além da história e espraiam-se do primeiro ciclo do ensino
básico às universidades. Em suma, andamos todos a alimentar uma tosca e
caríssima engenharia social destinada ao subdesenvolvimento das mentes.
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