Helena Matos
Argumentar. Contra-argumentar.
Nada disso interessa. E nem sequer é útil. O que temos de fazer é estudar
afincadamente a Revolução Francesa. Caso contrário isto acaba mal. O governo de
esquerda, mais o bater do pé a Bruxelas sem esquecer os arrebatamentos
patrióticos com a soberania… tudo isto nos conduz ao mesmo paradoxo: nada do
que nos está a acontecer é racional ou sequer ideológico. O nosso problema é o
iluminismo jacobino, esse período/modo de ser em que umas criaturas se achavam
melhores que as outras e como tal se entendiam não só predestinadas para mandar
como não aceitavam quaisquer limites à sua vontade.
Baseados nessa convicção, eles
que se achavam iluminados, fecharam os olhos à loucura que em seu nome se
instituía. Primeiro diziam-se contra as injustiças. Depois contra os
reaccionários, contra os suspeitos fosse isso o que fosse, contra os
ultra-montanos, contra os camponeses que se obstinavam em recorrer secretamente
ao calendário antigo para não se enganarem nos dias das sementeiras….
Por fim, quando já não havia
mais aristocratas, nem padres, nem cientistas como Lavoisier para guilhotinar,
nem gentes da Vendeia para afogar viraram-se contra si mesmos, porque nunca
eram suficientemente puros, porque tinham traído, porque… Não interessa. Havia
sempre um motivo.
A falência do modelo
socialista – e ele tinha necessariamente de falir porque foi concebido para
redistribuir a riqueza e não para a produzir – fez os socialistas não só
descrer de Marx como, e esse é o nosso drama actual, fê-los regredir para
Robespierre. Ver os actuais líderes dos socialistas portugueses a fazerem
acordos com o BE ou os socialistas espanhóis a ponderarem uma aliança com uma
criatura como Iglesias não é um problema político. É um problema
civilizacional.
Dir-me-ão: aqui e agora
ninguém vai levantar guilhotinas nem meter cabeças em cestos. Pois não. Porque
felizmente para todos nós os valores desse agora tão abominado centro se
impuseram ao longo das décadas. (Contudo deixo um aviso: a tolerância da
civilidade demora muito mais tempo a ser instituída do que a barbárie dos
radicais a regressar). No mais as técnicas, a crescente irracionalidade e o
maniqueísmo dos iluministas que andaram adormecidos pelas carbonárias e pelos
movimentos extremistas estão aí, agora dominantes porque avalizados pelo
exercício do poder com partidos outrora do centro.
Os falhanços, as dificuldades
e os erros são sempre explicados pela fulanização odienta dos outros. Em
Portugal, o esboço de orçamento levanta dúvidas? A culpa é de quem governou
antes, das agências de rating e de Bruxelas. Em Madrid o lixo cresce nas ruas
mas o que interessa à “alcaldesa roja” que tem umas ideias peregrinas sobre a
limpeza das cidades é apagar da toponímia qualquer eco do franquismo. Quanto
mais lixo no chão mais franquistas para apagar. Ainda vai inventar franquistas
de tal forma cresce o lixo!
Inevitavelmente os velhos
aliados de ontem tornam-se no inimigo de hoje. Veja-se como em Portugal, em
poucas horas o Tribunal Constitucional se tornou no bombo da festa dos mesmos
que na véspera viam no TC o salvador da Constituição e também da economia do
país (na série “Contos maravilhosos e de encantar sobre o crescimento
económico” foi atribuído aos vetos do TC o poder de dinamizar a economia!) Uma
decisão impopular (por sinal divulgada mesmo a tempo de destruir o que restava
da candidatura de Maria de Belém) bastou para reverter em negativo a imagem até
então solar do TC.
Percebeu o TC a mensagem? Se
não percebeu vai perceber – é assim que as coisas funcionam. Duvidam? Olhem
para Catarina Martins. Ouçam-na a dizer que o Presidente da República terá de
promulgar “Quer queira, quer não” os diplomas que vetou. Já agora quantos dos
que criticaram Cavaco leram a fundamentação que o Presidente fez dos vetos?
Pois deviam ler e perceberiam que um dia se arrependerão de não o terem feito:
independentemente das posições que se tenham nestas matérias – e as minhas não
são necessariamente coincidentes com as de Cavaco Silva – as lacunas nos
diplomas concebidos à pressa, unicamente para marcar a agenda, virão
inevitavelmente a gerar situações bem complexas. Claro que nesse dia, tal como
no passado sucedeu com outras “libertações” e “marcos históricos” decididos em
função da propaganda, vão dizer que não sabiam, que não era para ser assim, que
foram mal interpretados. Mas agora isso não interessa nada. Agora temos é de ir
com a onda – e que bem acompanhado se vai nessa onda com tantos jornalistas,
actores e demais artistas todos tão progressistas, todos sempre a dizer coisas
giras, que parecem tão inquestionáveis! – e fazer declarações a dizer que os
diplomas vão passar exactamente como estão.
Mas deixemos a matéria dos
vetos e passemos aos vetos em si mesmos e ao “Quer queira, quer não” de
Catarina Martins. Que não lembre a uma dirigente partidária que se acha primeira-ministra
de facto de Portugal tendo obtido, em 2015, um quarto dos votos com que Cavaco
Silva foi reeleito em 2011 e um quinto dos votos que o mesmo Cavaco Silva
obteve em 2006, repito que não lhe lembre que o Presidente da República tem o
poder de vetar não causa espanto: nos radicais a ignorância e a má-fé
confundem-se. Também não admira que o BE e seus compagnons das redes sociais
recuperem o estilo das páginas do Père Duchesne, esses panfletos em
que a infâmia sobre Maria Antonieta foi levado ao extremo e que no seu espalhar
de ódio nos mostram como o facebook não inventou nada. Mas que o PS se associe
a essa gente e que boa parte do centro direita viva entre o desconcertado e o
quase incomodado o que define como “mais esta teimosia do Cavaco” dá bem conta
da regressão no sentido darwiniano do termo que estamos viver.
É como se de cada vez que o BE
e a ala jacobina do PS anunciam uma nova causa ou fulanizam num novo ou velho
alvo o seu ódio tenhamos de viver esse momento com o fatalismo com que nos
tempos da Revolução Francesa a moderação e o bom senso se calavam mal se ouvia
o ruído das agulhas das tricoteuses.
Desde os tempos de
Robespierre e do seu Comité da Saúde Pública (o jacobinismo é indissociável de
uma ideia sanitária da sociedade) que se sabe que os radicais, invariavelmente
minoritários, conseguem de facto mandar porque os desmandos dos revolucionários
são aceites com fatalismo quer pelos moderados, que lhes reconhecem uma óbvia
superioridade política, quer por aqueles que num passado recente se destacavam
a denunciar os abusos e os falhanços do poder conservador e que perante a
pesporrência e a mediocridade dos revolucionários se calam. Uns
temerosos. Outros cúmplices.
A explicação do sucesso de
Robespierre não está portanto no terror imposto pela guilhotina, nem nas festas
ao Ente Supremo e à Deusa Razão nem sequer nas forquilhas da populaça. O seu
sucesso radica em algo acontecido anos antes. Num acontecimento hoje quase
esquecido: a queda de Turgot.
Contra Turgot, o homem a quem
Luís XVI confiou a reforma da França revoltaram-se os aristocratas, o clero, os
comerciantes, os proprietários… As reformas iniciadas por Turgot punham em
causa velhos privilégios e proteccionismos. Entre os primeiros a conspirar
contra as reformas de Turgot contava-se a própria familia de Luís XVI.
Ao fim de algum tempo Turgot
foi afastado e substituído por um muito medíocre Clugny de Nuits que criou a
Lotaria, suspendeu os chamados Éditos de Turgot, não mexeu nos direitos
adquiridos de ninguém e sobretudo deu por boa a intenção da França de entrar em
guerra com a Inglaterra que é mesmo que dizer que a França falida resolveu
apoiar a Revolução Americana. Logo Clugny de Nuits apenas saiu do cargo porque
morreu. Inesperadamente é certo mas sem ser contestado.
Anos depois veio a Revolução e
todos aqueles que anos antes tanto tinham contestado a alteração da velha ordem
trazida pelas reformas do moderado Turgot ficaram mudos perante as pilhagens,
os impostos crescentes e as perseguições levadas a cabo pelos revolucionários.
Desde então qualquer candidato
a Robespierre sabe duas coisas. A primeira diz-lhe que o seu principal aliado é
o fatalismo das élites que aceitam a lógica revolucionária com a submissão
inversa à energia com que pouco antes rejeitaram todas e quaisquer reformas. A
segunda é que os radicais não têm de respeitar a legitimidade dos outros
poderes. Os seus limites são apenas aqueles que ele e a sua gente traçam. Em
conclusão: o problema não é Catarina Martins dizer que o Presidente da
República terá de promulgar “Quer queira, quer não”. O problema é à esquerda e
à direita aceitar-se essa alarvidade como um direito natural.
Aqui chegados espero que
tenham percebido porque de facto não sei fazer desenhos.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
31-1-2016
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