Rafael Marques de Morais
Há dias ouvi o presidente
português, Marcelo Rebelo de Sousa, a justificar a sua ida a Angola para a
tomada de posse de João Lourenço. “Há um presidente eleito, e o presidente da
República de Portugal, uma vez convidado, vai à posse do novo presidente da
República de Angola, pensando nas relações fundamentais que existem entre
milhares e milhares de portugueses que estão em Angola e também alguns milhares
de angolanos que estão em Portugal.”
Marcelo, o “homem dos
afectos”, mostrou como as relações entre Angola e Portugal são traiçoeiras, mesmo
para um homem com o seu gabarito verbal.
É ponto assente que o
presidente de Portugal representa os portugueses. Por isso, teria bastado dizer
que vai representá-los no seu todo.
Quanto aos “angolanos que
estão em Portugal”, certamente não é o presidente português quem os representa.
Além disso, o MPLA não permite que os angolanos na diáspora, incluindo em
Portugal, votem. Não é a representação de Marcelo que vai suprir esse direito
constitucional negado aos angolanos em Portugal.
Sobre os “portugueses em
Angola”, temos aqui uma tese ofensiva amplamente difundida pelas classes
política e empresarial, segundo a qual Portugal deve estar à disposição do MPLA
para salvaguardar os interesses económicos e de segurança dos portugueses em
Angola.
Essa tese suscita duas
leituras. Primeiro, o MPLA – agora com a presidência bicéfala de José Eduardo
dos Santos e João Lourenço – está colado ao poder e, por isso, é o único
elemento que pode conceder oportunidades de negócios e proteger os portugueses.
Esta é, mais ou menos, a leitura portuguesa.
A segunda leitura, mais de
feição angolana, é crua. Se só o MPLA pode garantir negócios a Portugal e
defender os portugueses em Angola, então é porque todos os outros angolanos que
não são do MPLA e não estão no poder são – aos olhos dos poderes portugueses –
uma ameaça aos interesses comerciais e à segurança dos portugueses em Angola.
Assim, Portugal pode desculpar
qualquer acção que o MPLA empreenda contra o seu próprio povo, porque isso
serve os interesses dos portugueses.
Há dias, falei com uma amiga
portuguesa que esteve pela primeira vez em Angola durante as eleições. Circulou
de táxi de um lado para o outro e regressou ao seu país encantada com os
angolanos, o povo em geral, descrevendo algumas pessoas como “personagens
fantásticos, dignos da melhor literatura”. Sentiu-se apenas intimidada e
desconfortável com a arrogância e o exibicionismo da nomenclatura do MPLA, no
meio de tanta miséria. De um modo geral, este tipo de opiniões, vindas de
simples cidadãos, não interessa a Marcelo, nem aos políticos, empresários e
comentaristas portugueses que fazem consultorias para o regime angolano.
Marcelo também mencionou os
outros países que reconheceram os resultados de umas eleições sem apuramento de
votos em 15 das 18 províncias. Portanto, Portugal não está sozinho. Marcelo foi
apenas o primeiro e o único estadista a felicitar o regime, mesmo antes de o
próprio órgão eleitoral do regime, a CNE, ter declarado a vitória do MPLA.
Democracia é isso mesmo. Não é?
Neste cenário, os angolanos
que não são do MPLA e que criticam a postura de Portugal são simplesmente
classificados como tolos.
Há uma história comum de 500
anos, em que Portugal escravizou e colonizou os angolanos. Portanto, a relação
entre os dois povos nunca foi de amizade nem de interesses comuns. Sempre foi
como Portugal bem entendeu.
Todavia, em 1975, não foi o
povo angolano quem pôs os portugueses em fuga atabalhoada, com uma mão à frente
e outra atrás. Foi o MPLA.
Não foi o povo angolano, essa
ameaça aos interesses económicos e à segurança dos portugueses, quem entregou o
poder ao MPLA em 1975. Foi a própria liderança política portuguesa. Na altura,
quem o fez achava – como me confidenciou um antigo diplomata português – que os
do MPLA “eram os que mais se pareciam connosco” (a tese do lusotropicalismo).
De igual modo, foram o Partido Comunista Português (PCP), que estava a dar cartas
em Portugal, e o Movimento das Forças Armadas (MFA) quem primeiro convenceu os
cubanos e os soviéticos a entrarem em Angola, dando cobertura ao MPLA, que se
instalou no poder. Isto mesmo reiterou Otelo Saraiva de Carvalho em diversas
ocasiões.
Nem adianta falar dos anos de
Cavaco Silva e de Durão Barroso, e da implementação dos infames Acordos de
Bicesse, assinados em 1990. Também eles usaram do mesmo preconceito e da mesma
parcialidade dos comunistas.
Nem sequer adianta mencionar o
envolvimento de uma empresa portuguesa, a SINFIC, que foi instrumental para a
manipulação das eleições de 2012 e de 2017.
O cerne da desgraça e da
tragédia dos angolanos parte sempre de Portugal.
O presidente português bem
poderia ter dito que vai a Angola porque é uma oportunidade para transmitir o
“afecto”, mesmo que cínico, do povo português para com o povo angolano.
Poderia também ter dito que
vai transmitir o apoio e o encorajamento de Portugal ao novo presidente para
enfrentar os desafios do desenvolvimento humano em Angola. E ficaríamos todos
contentes, incluindo o próprio presidente eleito e o MPLA, porque o cinismo é
uma característica que nos une.
Pensei que o presidente dos
“afectos” tivesse tacto diplomático para lidar com Angola. Enganei-me. Mas não
me engano quanto à hospitalidade, ao sentimento de amizade, à capacidade de
perdoar e à tolerância do povo angolano.
Bem-vindo a Angola, camarada
Marcelo.
Título, Imagem e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola, 24-9-2017
São muito poucos os Angolanos que se identificam com a sua retórica de ressabiado, Rafael Marques!
ResponderExcluirLourdes Oliveira, uma Angolana que o detesta!