Visão editou um número especial sobre "As crises do capitalismo", março de 2012. É dessa edição que digitei a matéria que se segue, de autoria de Alexandra Correia. Inútil será lembrar aos gentis leitores que se interessam pela situação econômico-financeira de Portugal a minha recomendação de leitura. Atentem para os nomes dos protagonistas e outras mumunhas d'antanho...
Nunca houve almoços grátis
O que aconteceu a Portugal em 1977 e em 1983,
quando os “homens sem rosto” do Fundo Monetário Internacional aterraram na
Portela
Alexandra Correia
Adivinhe em que ano aconteceu o que se segue. Os
impostos ficam mais altos; os bilhetes simples e os passes sociais aumentam
entre 15 e 20%; o investimento em obras públicas é reduzido; os sindicatos
queixam-se do aumento do custo de vida enquanto os salários encolhem;
discute-se uma nova lei das rendas, com aumentos previstos de 20%; o preço da
água, do gás e da luz sobe; o défice e a dívida públicos estão nos píncaros; o
Governo apresenta três pacotes de austeridade, sem sucesso, antes de pedir
ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Está a pensar em 2011? Engana-se. Tudo isto
aconteceu em 1977. Apesar das mais de três décadas de diferença, as semelhanças
nas políticas de combate à crise são enormes. Com algumas exceções. Agora não é
possível desvalorizar a moeda, uma das receitas do período de 1977/1979 (em que
o escudo chegou a cair 50% em pouco mais de uma ano). Agora também não está nas
mãos do Banco de Portugal o aumento das taxas de juro, uma solução usada nos
anos 70 para combater a inflação.
Nova adivinha: em que ano se impôs um imposto
extraordinário que levou uma parte do subsídio de Natal dos portugueses? Foi no
mesmo ano em que se alteraram as leis do trabalho, facilitando a suspensão
temporária dos contratos (o chamado lay-off);
em que houve muitas jornadas de luta e manifestações e diversas notícias sobre
falências de Pequenas e Médias Empresas; o ano em que muitos trabalhadores
sobreviveram com os ordenados em atraso, em que o Governo voltou a subir os
impostos e permitiu aumentos nas rendas das habitações; em que os transportes
fizeram greves e o crédito malparado bateu recordes; em que as farmácias
ameaçaram cortar o crédito à previdência por falta de pagamento. E, mais uma
vez, com o País à beira de uma crise gravíssima, se volta a pedir ajuda ao FMI.
Foi em 1983, mas podia ter sido em 2011. De novo,
as diferenças no combate à crise relacionam-se com a desvalorização do escudo e
o aumento das taxas de juro. Seja como for, por esta altura, os portugueses já
conhecem bem a receita do FMI, cantada por José Mário Branco em 1979: “Consolida,
filho, consolida…”
A PRIMEIRA INTERVENÇÃO
No verão de 1977, Portugal está sem dinheiro para
pagar as importações. José Silva Lopes, telefona ao primeiro-ministro, Mário
Soares, acordando-o, para lhe dizer que no dia seguinte o País podia entrar em
bancarrota. Soares terá respondido que então era melhor deixá-lo dormir, para
estar preparado para o dia de amanhã.
A história parece uma anedota – e houve várias
nesses tempos – mas Portugal estava num grande aperto. O choque petrolífero de
1973 fez disparar os preços do petróleo. Depois veio a Revolução dos Cravos e a
urgência em dar melhores condições a um povo que vivia na miséria, aumentando
os ordenados, por exemplo, e introduzindo direitos sociais. Houve fuga de
capitais, regressaram os portugueses das antigas colónias e o défice orçamental
do País ultrapassou os 9% do PIB (Produto Interno Bruto). Portugal endividou-se, mas até os empréstimos do
estrangeiro (nomeadamente os do BIS – Banco Internacional de Pagamentos) tinham
os seus limites.
Entretanto Frank Carlucci, embaixador dos Estados
Unidos em Lisboa, sugere um “grande empréstimo”, que poderia ser feito a
Portugal por um grupo de países. O acordo foi assinado em junho de 1977, em
Paris, por um conjunto de 14 países, com a condição de se aplicar um plano de
estabilização negociado com o FMI.
Os três
pacotes de austeridade, lançados pelo I Governo Constitucional, de Mário
Soares, não foram suficientes. Houve subida das taxas de juro para combater uma inflação que chegou aos
34% em setembro de 1977, desvalorizou-se o escudo e o resultado foi um aumento
das exportações. Mas não chegou. Ainda assim aguentou-se o País até à entrada
da primeira fatia do “bolo” de 750 milhões de dólares, na segunda metade de
1978. Valeu um novo empréstimo do BIS e a ajuda de uma equipa do MIT, liderada
por Richard Eckaus, que visitou Portugal nessa altura. Um dos economistas,
Rudiger Dornbusch, tem a ideia da desvalorização deslizante (o crawling peg, um sistema misto de
controlo das taxas de câmbio, com intervenção do mercado e das autoridades
monetárias).
Com a desvalorização deslizante, o escudo foi
perdendo valor ao ritmo de 1% ao mês. A intervenção do FMI apostou nesta
receita, aumentando-a para 1,25% ao mês. Além disso, impôs uma redução de 500
milhões de dólares no défice externo, um aumento de impostos e dos preços da
água, do gás, da eletricidade, dos transportes e de alimentos essenciais, e uma
travagem na subida dos salários, limitando os aumentos a… 20 por cento!
No primeiro de maio de 1979 gritou-se: “Basta de
apertar o cinto/Fora com o Mota Pinto [primeiro-ministro à época] ” e “O povo
não come/Com o cabaz da fome”. Mas, apesar do custo de vida, não houve grande
contestação ao FMI. Por quê? Uma frase do histórico dirigente comunista Octávio
Pato, no aniversário da Revolução dos Cravos, em 1978, é reveladora: “A
crescente degradação económica, social e política serve de alimento às
campanhas de reação contra o 25 de abril.” Pela mesma altura, no Diário de Lisboa, (não sei porquê, mas ao acessar o link aqui disponibilizado fico com a impressão que esse jornal era um órgão oficioso do PS) encontramos um artigo
intitulado A crise económica não é culpa
do 25 de Abril. A esquerda receava uma colagem das palavras “crise” e “revolução”.
Ainda assim, Armando Teixeira da Silva, antigo
líder da CGTP, garante que foi a luta dos trabalhadores que, na altura travou “a
receita de sempre do FMI: racionalizar o setor público, tornar o mercado de
trabalho mais flexível e congelar a contratação coletiva”. “As medidas de
austeridade não podem ser desligadas do pedido de adesão à União Europeia.
Razões políticas, não económicas. Recordo que nesta data o PS fazia coligação
com a direita”, continua o antigo dirigente sindical.
Já em 1983 as vozes da rua soaram de outra
maneira. Em novembro, a CGTP organizou uma jornada de luta com greves e
manifestações contra o “roubo do 13º mês”, os salários em atraso e o lay-off. Mário Soares, de novo
primeiro-ministro, incendiou os ânimos chamando “profissionais da agitação” aos
trabalhadores que se manifestaram empunhando bandeiras negras como símbolo da
fome. Nas vésperas de Natal, o povo marchou do Rossio a S. Bento, à noite,
levando archotes, velas e panos negros, e gritando: “Pinto mais o
Mário/Roubam-nos o salário”; “Isto não pode ser/Trabalhar sem receber”; “Não
queremos aqui/O FMI”.
Foi uma consoada triste. Tal como sucedeu em 2011,
o Governo criou um imposto extraordinário que levou parte do subsídio de Natal.
Nesse ano de 1983, as vendas no comércio, na quadra natalícia, tiveram uma
quebra de 40 por cento.
Mais de 150 mil trabalhadores sofriam com os
salários em atraso (incluindo na estatal CP!). Em seis meses, faliram 12 mil
pequenas e médias empresas. Os professores afligiam-se com a quantidade de
crianças que chegavam à escola com fome. Em Setúbal, o bispo D. Manuel Martins
abria os olhos do País para as situações de miséria. A primeira intervenção do
FMI em Portugal ficou concluída em 1979. O que aconteceu entretanto? Quase o
mesmo que anteriormente: o aumento dos salários levou a um crescimento da
procura por produtos importados, criando um grande défice da balança de
pagamentos. O défice orçamental passou os 11% e a dívida externa não parava de aumentar.
O Banco de Portugal começou a ficar sem dinheiro para pagar as importações.
À ESPERA DO FINAL FELIZ
Ernâni Lopes, ministro das Finanças, começou a
impor uma receita de austeridade ainda antes da assinatura do acordo com o FMI
(a equipa que veio negociar com Portugal era liderada pela italiana de origem
arménia Teresa Ter-Minassian), o que aconteceu em agosto de 1983. E logo os
jornais escreveram: “Vem aí a onda do choque”. “As pessoas não têm consciência
do risco que vivemos. Estivemos muito perto do racionamento da gasolina e do
trigo”, afirma Alípio Dias, à época secretário de Estado do Orçamento, que fala
num grande “descontrolo na balança de transações correntes e na despesa pública”.
Uma das razões do descontrolo, adianta o
ex-governante, era a facilidade com que um secretário de Estado ou mesmo um
chefe de gabinete de um ministro enviava um contrato de obras públicas, por
exemplo, para o Tribunal de Contas. Este visava-o, ainda que não houvesse
dotação orçamental para a obra. Resultado: buracos nas contas públicas.
A receita do FMI passou pela desvalorização
deslizante do escudo, pela subida das taxas de juro, pelo corte do investimento
estatal, pelo controlo salarial na função pública e pela subida dos preços para
desincentivar as importações. No 1º de Maio de 1984, Teixeira da Silva, da
CGTP, chamava a atenção para o extraordinário número de 500 mil desempregados,
e Torres Couto, da UGT, perguntava: “De que serve que daqui a um ano já não
haja dívida externa se já não existirem empresas?”
Mas o País sobreviveu. Em 1985 a crise estava
controlada e, pouco depois, o montante total emprestado (555 milhões de euros,
em valores atuais) foi reembolsado. Dentro do FMI, Portugal tornou-se num caso
de estudo pelo sucesso da intervenção. E à terceira, aquela em que nos vemos
agora? Haverá um final feliz?
Texto: Alexandra
Correia, in “As
crises do capitalismo”, (Visão História) março 2012, páginas 54 a 57.
Digitação e Edição: JP
PROTAGONISTAS EM TEMPOS SOMBRIOS
O poder em Portugal durante as intervenções do FMI
I GOVERNO CONSTITUCIONAL 1976/1978
Primeiro-ministro: Mário Soares
Ministro das Finanças: Henrique Medina Carreira
Governador do Banco de Portugal: José da Silva Lopes (1975/1980)
II GOVERNO CONSTITUCIONAL 1978
Primeiro-ministro: Mário Soares
Ministro das Finanças: Vitor Constâncio
III GOVERNO CONSTITUCIONAL 1978
Primeiro-ministro: Alfredo Nobre da Costa
Ministro das Finanças: José da Silva Lopes
V GOVERNO CONSTITUCIONAL 1978/1979
Primeiro-ministro: Carlos Mota Pinto
Ministro das Finanças: Jacinto Nunes
IX Governo CONSTITUCIONAL 1983/1985
Primeiro-ministro: Mário Soares
Ministro das Finanças: Êrnani Lopes
Governador do Banco de Portugal: Jacinto Nunes (1980/1985)
XVIII GOVERNO CONSTITUCIONAL 2009/2011
Primeiro-ministro: José Sócrates
Ministro das Finanças: Teixeira dos Santos
Governador do Banco de Portugal: Vítor Constâncio (2000/2010)
Boa edição, matéria ruim: cronologia confusa...
ResponderExcluir(Rosa Maria)
De Francisco Vianna:
ResponderExcluirTudo bem, foi isso mesmo que aconteceu com a 'terrinha'... Mas a julgar pelo rol de 'socialistas' (listados ao final) que administraram Portugal, desde a "revolução dos cravos", a coisa não poderia mesmo acabar bem.
A insistir nessa tresloucada 'solução onírica', nossos antigos colonizadores irão de mal a pior...
É preferível que eles voltem a restaurar a Monarquia, desta vez constitucional, e comecem a fazer a economia de mercado começar a se sentir juridicamente segura na terra lusitana, para que os primeiros resultados de crescimento apareçam.
De fato, meu amigo, não existe refeição grátis...
VIANNA