O que significa
interrogarmo-nos sobre se é necessário um novo 25 de Abril? Significa o mesmo
que perguntarmos se é preciso um novo Salazar. Por trás de ambas as
interrogações está a mesma pulsão antidemocrática, a mesma recusa dos naturais
defeitos dos regimes democráticos e o mesmo desejo de impor uma determinada via
política sem respeitar as escolhas dos portugueses.
Já sei que muitos vão ficar
indignados com a comparação, mas ela tem, do ponto de vista do respeito pelos
princípios da democracia, toda a pertinência. Por uma razão simples: ou
consideramos que o 25 de Abril foi uma revolução democrática, que devolveu a
voz ao povo português, ou consideramos que ele foi mais do isso, que foi também
um projecto político com um programa específico, independente da vontade desse
mesmo povo português. Aparentemente é isso que pensam os que, por estes dias,
proclamaram que “o poder político que actualmente governa Portugal configura um
outro ciclo político que está contra o 25 de Abril, os seus ideais e os seus
valores”. Mas que ideais? E que valores? Os do Estado de direito democrático?
Não, não é essa a acusação. A acusação não tem a ver com atentados à liberdade
ou abusos de poder que façam perigar as regras da democracia. A acusação
refere-se antes a políticas concretas – às políticas com que não concordam
aqueles que se têm por donos do “espírito do 25 de Abril”.
Ora sucede que, como escreveu
um filósofo político de esquerda, Norberto Bobbio, na tradição
democrático-liberal – que é tradição ocidental e é a nossa tradição -, “as
definições de democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou
menos amplo de regras do jogo”. Mais: “Todas essas regras estabelecem como
chegar à decisão política e não o que decidir.” Isto é, a democracia não tem
“um espírito” que implique realizar políticas mais à esquerda ou mais à
direita, a democracia é tão-somente sobre os mecanismos que permitem decidir,
por exemplo, o futuro dos sistemas de Saúde e Segurança Social, não sobre
modelos concretos mais públicos ou mais privados.
Nos anos que se seguiram ao 25
de Abril e ao 25 de Novembro era apenas a extrema-esquerda que procurava a sua
legitimidade no “espírito” da revolução dos cravos. Agora parecem ser todos
aqueles que, pura e simplesmente, não parecem dispostos a aceitar uma realidade
política em que, pela primeira vez na nossa história democrática, coincide um
Presidente que não é de esquerda com uma maioria parlamentar que também não é
de esquerda. No primeiro 25 de Abril em que isso aconteceu fizeram a birra que
se viu.
Mais: o que é que significa dizer que “este é o primeiro governo da nossa história democrática que parece querer dispensar a memória de Abril”? Que “memória de Abril” é essa que não pode ser dispensada na opinião do principal partido da oposição? O que será o “rumo de crescimento e progresso”, agora supostamente invertido? Será o rumo que levou a que Portugal tivesse, na última década, o terceiro menor crescimento de todo o mundo (pior só o Zimbabwe e a Itália)? Será o “progresso” referido o do crescimento da dívida, hoje transformada num verdadeiro quarto “d” do regime democrático? E não é verdade que foi este quarto “d” o responsável por estarmos hoje dependentes de credores, logo com menos margem de liberdade?
Numa democracia não existem
intérpretes genuínos da vontade popular, existe sim pluralismo e competição
entre ideias diferentes. E essas ideias, desde que respeitem as suas regras
formais e não visem subvertê-las, são tão legítimas umas como outras. É preciso
pois ser claro: quando se invoca “Abril” para combater esta ou aquela opção
política, não se está a invocar a democracia, está-se a invocar um qualquer
programa revolucionário que hoje, como ontem, um conjunto de heróis diz
interpretar. A batalha da Constituinte já foi essa batalha, isto é, a guerra
entre a legitimidade dos deputados eleitos e a legitimidade do MFA. A revisão
constitucional de 1983 foi mais um passo nesse combate democrático, ao afastar
de vez os militares do poder. Agora só se estranha que tantos dos que, nessas
alturas decisivas, ajudaram a tornar Portugal numa democracia normal surjam a
dizer que, afinal, nos temos de submeter ao “espírito”, ou à “memória”, de
Abril, seja lá o que isso quer dizer – ou melhor, isso quer dizer que temos
todos de aceitar, sem contestar, as heranças socialistas e estatistas das
últimas décadas.
![]() |
Álvaro Cunhal |
Podia aqui elaborar sobre as
contradições morais dos que, cegos por preconceitos ideológicos, têm andado por
estes dias a protestar contra uma campanha de recolha de desperdícios para
entregar aos mais necessitados, mas não vale a pena. O meu ponto é mais
simples: em política a moral, a piedade ou a bondade não são exclusivo de
nenhuma tendência ou facção, e as boas intenções não são critério para avaliar
o resultado das acções concretas. No mercado das ideias ninguém possui carimbos
de validade ou invalidade, pelo que todos estão sujeitos à contestação e ao
escrutínio democrático.
É por isso que foi realmente
triste ver a forma como Mário Soares se comportou neste 25 de Abril. Ele não é
apenas um político como tantos outros: ele é um antigo Presidente da República,
a quem o Estado democrático reconhece esse estatuto e os direitos
correspondentes, e que por isso tem o dever de respeitar as instituições e,
sobretudo, de honrar a casa da democracia, que é a Assembleia da República. Ele
que tanto se bateu para fazer vingar a legitimidade democrática contra a
legitimidade revolucionária não deve – não pode – aparecer a defender uma
alegada legitimidade de “Abril” para deslegitimar quem exerce o mandato democrático.
Fazê-lo é uma prova de fraqueza, não de força, na argumentação política. E
deixa-o exposto à ideia de que se toma por dono do regime.
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