José Manuel Fernandes
A oposição não pode esquecer
como este governo chegou ao poder, e por isso o ressentimento não vai
desaparecer. Mas, ao mesmo tempo, tem de ter sangue-frio e paciência, esperar
pelo fim do foguetório
Vou citar, sem ironia mas com
o mesmo cinismo de quem assim falou: “o tempo não está para radicalizações, mas
sim para compromissos”; “não é tempo de luta de trincheiras, mas de debate
democrático, leal e aberto”; “espero que o ressentimento seja revogado sem
delongas”; e ainda “é necessário virar a página da incapacidade de construir
pontes e estabelecer acordos”.
As citações são do discurso de
Augusto Santos Silva [foto] que encerrou o debate do programa do Governo de António
Costa. E cito-as, repito, sem ironia pois é difícil conseguir, ao mesmo tempo,
pedir o impossível e fazer tudo para que o impossível seja mesmo impossível.
De facto, não é possível pedir
que não haja ressentimento quando se fez batota ao jogo, alterando as suas
regras a meio – e é esse o sentimento de grande parte dos portugueses, mesmo de
muitos que não apoiaram nem apoiam a coligação. É que não é possível querer
compreensão quando se disputou umas eleições com base em regras não escritas,
mas assumidas pelos eleitores, e depois de perder essas eleições se mudaram
essas regras numa altura em que os eleitores já não podiam repensar as suas
opções de voto.
Ao mesmo tempo, não se pode
pedir o fim da luta de trincheiras quando se mantém um discurso de campanha
eleitoral, cheio de acidez e de remoques. Mais: o partido que fugiu a qualquer
acordo durante a anterior legislatura, os políticos que, dentro do PS, minaram
a negociação de 2013 e levaram Seguro a roer a corda no último minuto, os
dirigentes que rasgaram sem pudor o único acordo feito entre a anterior maioria
e actual minoria alcandorada a São Bento (o acordo do IRC), não têm moral e
muito menos autoridade para vir agora falar de entendimentos.
Mas há ainda pior, e isso não
desaparecerá tão cedo da política portuguesa: quem cava trincheiras, como o PS
cavou nos últimos quatro anos, trincheiras que agora transformou em abismos,
não pode falar de estabelecer pontes. Porque quebrou todo e qualquer princípio
de confiança.
Como podemos confirmar ao
longo do debate, se isso ainda fosse necessário, e como estamos a ver todos os
dias, os dois partidos de extrema-esquerda estão, no fundamental, onde sempre
estiveram. No caso do PCP, este não se moveu sequer um milímetro, e a acção da
CGTP está aí a prová-lo. Quem se chegou a eles foi o PS, e por vontade própria.
É bom que não se mistifique a
história. Esses dois partidos não estavam fora do chamado “arco da governação”
por uma qualquer conspiração anti-democrática das restantes forças políticas:
estavam de fora pela mesma razão por que votaram sempre contra todas as
revisões constitucionais. O nosso consenso constitucional não é entre o
centro-esquerda e a extrema-esquerda, como se pretende fazer crer – o nosso
consenso constitucional é demoliberal desde as revisões de 1982 e 1988, e é
pró-europeu em todas as revisões que vieram a seguir. Mais: o nosso consenso
político é, com as variações próprias do pluralismo ideológico, o de querermos
viver numa economia social de mercado e com uma democracia representativa.
Ninguém expulsou esses dois partidos desse consenso – eles é que se assumem
como anti-capitalistas, eles é que contestam a “democracia burguesa”, eles é que
têm estatutos onde se assumem como revolucionários. Nada disto foi inventado
agora, nada disto mudou depois da serôdia e disparatada “queda do muro” de que
agora se fala.
É verdade que os votos de
todos os portugueses valem o mesmo, sempre valeram, e foram votos de
portugueses que sempre elegeram deputados que, pelas suas escolhas políticas,
pela sua retórica e pela sua permanente contestação das regras do regime
democrático, nunca entraram em soluções de governo. Foram esses deputados
sempre quiseram estar fora do consenso que era e é largamente maioritário em
Portugal, e nunca ninguém impediu que os portugueses, por convicção política ou
por voto de protesto, os elegessem. Ou seja, ninguém os pôs de fora, eles é que
verdadeiramente nunca quiseram entrar sem ser impondo as suas condições. Como
impuseram agora a um PS enfraquecido por uma derrota eleitoral pesada e
inesperada.
Na verdade nem sequer
necessitaram de “estar dentro” para impor as suas condições, pois o Bloco não
entrou para o governo e o PCP muito menos. Juntos com o PS não tiveram sequer o
nível de consenso necessário a votarem em conjunto uma moção de confiança, pois
não se entenderiam sobre o texto a votar. O seu único consenso, o único que
continua a valer, é o da coligação que diz não a um governo dos mais votados. O
seu único consenso não foi ainda o da coligação que diz convictamente sim a
Costa e ao seu Governo.
É natural por isso que o PS
saiba que caminha sobre terreno movediço. E que se incomode por estar
notoriamente nas mãos do PCP e das suas imposições. O que tem uma inevitável
consequência: mais tarde ou mais cedo, o PS quer poder virar-se para a sua
direita invocando o “interesse nacional”. Isso sucederá quando as coisas se
complicarem (e podem complicar muito) e quando a extrema-esquerda lhe quiser
tirar o tapete, algo que só dependerá da escolha da melhor oportunidade e
pretexto.
Daí o cínico discurso de
Augusto Santos Silva e o coro dos comentadores sempre prontos a seguir os
socialistas. Daí esta exigência à direita de que mostre o “sentido de Estado”
que eles próprios nunca tiveram e continuam sem praticar. Daí a imensa
arrogância de pretender ter a colaboração de quem teve mais votos e tem mais
deputados no dia em que se virem sem os votos e os deputados “instrumentais”
que lhe serviram para assaltar o poder.
Esta legislatura abre num
clima de tensão e divisão que não foi criado pela coligação – foi criado por
quem se recusou a ter qualquer negociação séria, antes ensaiou uma palhaçada
sem nome nos dias que se seguiram à sua derrota nas urnas, um clima envenenado
que foi aprofundado por quem chegou ao poder mudando as regras do jogo depois
de este já ter terminado.
É por isso que o ressentimento
não vai desaparecer – e, na verdade, é bom ter memória em política, para ser
ingénuo duas vezes. É também por isso que o Governo não poderá contar com
qualquer compreensão por parte dos que foram os mais votados a 4 de Outubro de
2015, mesmo que sem maioria.
Se nesse dia os eleitores
tivessem ido às urnas com a consciência de que iam escolher entre dois blocos
políticos diferentes, como vão na Dinamarca (país de que tanto se tem falado,
mas com tanta ignorância), saberiam que estavam a eleger deputados para ter
como primeiro-ministro o candidato preferido, e previamente indicado, por cada
bloco político. Nessa altura ninguém estranharia que o PM não fosse o líder do
partido mais votado, mas sim o líder do bloco mais votado. Mas não foi isso que
sucedeu. Não era essa a escolha que estava em cima da mesa dos eleitores a 4 de
Outubro – era a escolha omissa, a opção escondida, a possibilidade que apenas
se sussurrava de forma sibilina. Por isso não foi sobre ela que se fez campanha
e que se trocaram argumentos nos debates pré-eleitorais. E é finalmente por
isso que António Costa sempre será um chefe de governo com autoridade
diminuída.
No dia em que o superior
interesse do país exigir um realinhamento de alianças, não vejo como tal possa
ser feito sem ser voltando à casa de partida. Idealmente, realizando eleições
nas quais os eleitores já saberiam o que estariam a escolher, isto é, não iriam
ao engano. Acessoriamente, trocando de governo, pois nesse dia António Costa só
terá consigo uma coligação negativa já sem disfarces. Será o dia em que não
terá autoridade para esperar ser ajudado se gritar por socorro – pelo
contrário, terá antes o dever de assumir o seu logro e ir oferecer ajuda a um
novo governo, a um governo formado a partir do maior grupo parlamentar. Isto se
acreditar mesmo que existe um interesse nacional, se não for apenas um jogador
de poker político.
Não se deve pois esperar que a
direita esqueça ou perdoe o golpe baixo de que resultou o actual Executivo
costista. Deve é exigir-se-lhe calma e sangue-frio. Se estiver realmente
convicta de que as políticas preconizadas no remendadíssimo Programa de Governo
são erradas, então tem de ter a paciência de esperar pela prova dos factos,
mesmo que isso demore (há dinheiro nos cofres, há uma torneira aberta no BCE),
mesmo que o país tenha de pagar um preço por isso, pois é assim que se joga de
acordo com as regras das instituições. Não é a teoria da vacina, é apenas a
serenidade e firmeza indispensáveis para mostrar que sabe ater-se à legalidade
(e este governo é legal), que sabe distinguir entre a legitimidade formal (que
este governo tem) e a legitimidade moral (que não tem), que se manterá fiel aos
seus princípios e confia no juízo, a seu tempo, dos portugueses.
Pessoalmente estou convencido de
que sofreremos muito, como país, com as consequências das políticas erradas que
aí vêm e que são, só com a diferença de terem menos aeroportos e TGV’s, as
mesmas que fizeram com que Portugal já fosse um problema antes dos problemas
financeiros de 2008, como se mostra num estudo realizado por economistas que
uma certa esquerda gosta de citar e truncar. É que, como sublinharam Luís
Aguiar-Conraria e Francisco Assis, ambos de esquerda, mas sem sofrerem da
cegueira dominante, os nossos problemas vinham detrás e vinham de uma dívida
pública que já então era galopante (e de uma dívida privada também fora de
controle). Regressar às receitas desse passado não podem deixar de dar o mesmo
resultado, mesmo dez anos passados. É duro, mas é assim.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
4-12-2015
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