Paulo Ferreira
Será fácil acompanhar a
carreira do governo no orçamento e na economia. Mais difícil será a percepção
das políticas que deixam facturas para pagar no futuro
Há um ano toda a gente diria
que António Costa seria hoje primeiro-ministro. Mas há um ano ninguém sonharia
que ele o seria desta forma: perdendo uma eleição que só podia ganhar por
muitos mas conseguindo o apoio parlamentar com o BE e o PCP que lhe permite
começar a governar.
As regras do jogo são estas e
não adianta perder muito mais tempo nesta discussão.
A direita tem motivos para
estar irritada. Está irritada porque ganhou umas eleições para as quais partiu para
tentar perder por poucos, mas ainda assim não governa. E está irritada porque
fez o trabalho duro que tinha que ser feito e aqueles que levaram o país à
bancarrota acabam agora por voltar ao poder numa conjuntura muito melhor do que
a que deixaram há quatro anos.
Já todos percebemos o capital
de queixa e que seja irresistível fazer de António Costa o primeiro-ministro
com o cognome de “o derrotado”. Até a moção de rejeição que PSD e CDS ontem
apresentaram ao programa de Governo se mostrou obrigatória, para legitimar, no
futuro, uma eventual falta de apoio de que o Executivo possa precisar.
Mas está feito esse sublinhado
e neste momento não haverá no país quem não tenha percebido o que se passou e
sobre isso não tenha o seu juízo feito. Agora tem que ser “business as usual”.
Há um governo a quem compete governar e uma oposição a quem compete opor-se e
construir uma alternativa. E isso não se faz prolongando o registo de “nós é
que ganhámos e devíamos estar nessa bancada”. Isso seria o melhor cimento que o
entendimento à esquerda poderia receber para se solidificar.
Governar nesta conjuntura nunca
seria fácil. Fazê-lo neste contexto, com uma de camisa-de-forças que está
amarrada, por um lado, à necessidade de cumprir compromissos orçamentais e, por
outro, à necessidade de estabelecer consensos que são contra-natura para os
partidos que apoiam a solução, torna tudo ainda mais difícil.
Para disfarçar uma parte
destas dificuldades próprias será irresistível dramatizar o ponto de partida,
recuperando a rábula habitual a mudanças de ciclos políticos: a herança é muito
pior do que o “defunto” dizia. Nos próximos tempos teremos o Governo a lamentar
o copo meio vazio que recebeu e a oposição de direita a garantir que tinha
deixado um copo meio cheio. O país será rigorosamente o mesmo, a perspectiva é
que será diferente.
Do que já se conhece,
adivinha-se um Orçamento de Estado para 2016 feito, em boa parte, por conta do
abandono da descida generalizada da Taxa Social Única que estava no programa
eleitoral do PS. É com o abandono da medida, que vai ser aplicada apenas aos
salários inferiores a 600 euros, que serão pagas as principais cedências ao BE
e ao PCP, que implicam mais despesa ou menor receita fiscal. O resto implicará
um défice orçamental mais elevado do que previa a coligação de direita nas suas
contas. E isso fará mais dívida, a tal que é insustentável.
A gestão orçamental será a
mais crítica. Foi para as contas públicas que nos habituámos a olhar nos
últimos anos, os seus resultados são relativamente objectivos e são os mais
escrutinados por entidades internas e externas. Será o primeiro indicador para
avaliar o governo e é também aqui que a vigilância de Bruxelas, agora muito
mais apertada do que era há quatro anos, nos valerá contra irresponsabilidades
semelhantes às do passado.
Depois teremos os indicadores
económicos-chave, onde as políticas públicas têm alguma influência mas que
dispõem de vida própria: crescimento, desemprego, exportações e défice externo.
Mais difícil será a percepção
das políticas que deixam facturas para pagar no futuro.
O regresso pleno das empresas
de transportes à esfera pública é um deles. A dívida que estas empresas
acumularam no passado foi um cancro e um fardo pesado para os contribuintes mas
como ficava fora do perímetro orçamental não era visível à vista desarmada. A
entrega destas empresas ao PCP e à CGTP – talvez a maior exigência dos
comunistas como moeda de troca para o apoio ao governo – vai fazer regressar
todos esses vícios. As greves que já estão marcadas para as próximas semanas –
em nome de quê? – não podiam ser mais elucidativas sobre isso.
O recuo nas tímidas regras de
mobilidade da função pública que já estavam em vigor é outro péssimo sinal.
Desburocratizar alguns processos, como acredito que Maria Manuel Leitão Marques
fará bem, é uma coisa. Reformar e reduzir a dimensão da estrutura do Estado é
outra coisa, bem diferente. Não haverá descida da carga fiscal para níveis
decentes sem que se dê esse passo. Mas com este governo isso não será mais do
que uma miragem.
A legislação laboral é mais
uma área onde a agenda deste governo vai no sentido inverso ao da
flexibilização que a competividade exige. Vamos reforçar a dualidade entre os
que estão dentro do sistema, altamente protegidos, e os que estão fora e querem
entrar, totalmente desprotegidos. Pensar que é com a proibição de formas de
emprego precárias que se combatem os abusos praticados por muitas empresas é
uma ilusão. Mas nessa matéria há um especialista que vai estar sentado no
Conselho de Ministros e que poderá explicar aos colegas o erro que pode
cometer-se. Assim Mário Centeno queira comprar essa guerra.
Por fim, a Segurança Social.
Vieira da Silva fez mudanças importantes e no sentido certo em 2006. Mas
curtas, como se sabe. Insistir nos paliativos para evitar o aborrecimento de
uma reforma a sério é, também aqui, adiar um problema que nos sairá caro.
Dir-se-á que não é para
praticar políticas de direita que está em funções um governo de esquerda. É
verdade. Digam-nos só de onde virá o dinheiro, daqui a alguns anos, para pagar
estas políticas que têm todo o aspecto de bombas-relógio. Ou ainda seremos
tentados a pensar que, se a austeridade é de direita, então a bancarrota é de
esquerda.
Título e Texto: Paulo Ferreira, Observador,
4-12-2015
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