Alberto Gonçalves
De vez em quando, do alto da montanha de
livros e merchandising partidário que acolhe na Marmeleira (?), Pacheco Pereira
olha para baixo e deprime-se. Voltou a acontecer esta semana
De vez em quando, do alto da
montanha de livros e merchandising partidário que acolhe na
Marmeleira (?), Pacheco Pereira olha para baixo e deprime-se. Voltou a
acontecer esta semana, na qual, em crónica no Público, o popular intelectual
lamenta o desprezo que, cito, “a escola, a universidade, a sociedade, a
comunicação – já para não falar das chamadas ‘redes sociais’ – e a política
hoje dão às humanidades e aos estudos clássicos”. Desencantado, Pacheco Pereira
atribui parte da culpa desta desgraceira ao governo PSD-CDS (cá dentro) e ao
sr. Trump (lá fora). Amargurado, Pacheco Pereira constata que os jovens e os adultos
de agora não fazem uma ideia sobre “Polifemo ou Salomão, ou Judite ou o Bom
Samaritano”, não suspeitam coisa nenhuma acerca da “Odisseia, ou da Antologia
Grega”, não sabem “quem era Argos ou Tifão”, nem conhecem “Esparta e Atenas”, e
“Sófocles e Tucídides”.
Como careço dos pergaminhos de
Pacheco Pereira, não duvidarei dos ilustrados e remotos tempos em que jovens e
adultos recitavam a Antologia Grega nas feiras e nos mercados. O importante é
ficar implícito que Pacheco Pereira domina todos os temas acima, erudição que
decerto exercita nas conversas em “off” com o amigo Jorge Coelho – um evidente
especialista em Calímaco e São Gregório de Nazianzo. Por outro lado, fica
explícito que tamanha sapiência não lhe serve de muito, já que mesmo assim
continua um encarniçado defensor da sofisticada gente que manda no país.
Já a gente que obedece
constitui um enigma. Se é verdade que, nos cafés ou nas paragens de autocarro,
a populaça só esporadicamente troca palpites alusivos a Plutarco, é igualmente
verdade que a sua rudeza não a impede de partilhar com Pacheco Pereira o gosto
pela frente de esquerda que governa a nação, sob o sorriso da oligarquia e a
reverência da generalidade dos “media”. Pelos vistos, frequentar os clássicos
ou ignorar a respectiva existência produz resultados idênticos.
A julgar pelas sondagens, os
portugueses andam satisfeitíssimos com quase tudo. E, empurrados pela confiança
do PR e a tranquilidade do PM, acreditam em tudo. Acreditam que a história do
Montepio vai correr bem. Acreditam que o golpe do Novo Banco correrá melhor.
Acreditam que há alternativa à “austeridade”. Acreditam que a satisfação das
clientelas não lhes custará um cêntimo. Acreditam que o “recorde” do défice é
para levar a sério. Acreditam que o recorde da dívida não é para levar a sério.
Acreditam que Pedro Passos Coelho e o “estrangeiro” conspiram contra o nosso
sucesso. Acreditam no nosso sucesso. Acreditam em consumados mentirosos.
Acreditam que gregos são os do Benfica e o sr. Varoufakis.
Descontada a última convicção,
os portugueses acreditam de facto na visão alucinada em que Pacheco Pereira,
por conveniência, finge acreditar. É aqui, e apenas aqui, que se nota a
diferença propiciada pela intimidade com os clássicos. Nas cabecinhas erradas,
as referências certas inspiram um curioso apreço pela dissimulação. Ou seja, os
ignorantes são enganados; os instruídos colaboram no engano. Pacheco Pereira
tenta provar a falta de sabedoria na sociedade e prova abundantemente a falta,
também perigosa, de vergonha na cara.
No meio disto, a eventual boa
notícia é que o rumo que o país adoptou encurta diariamente a distância das
massas a Atenas. À medida que nos aproximamos de nova bancarrota e de novo
resgate (ou – Deus nos valha – de resgate nenhum), a familiaridade com os
gregos arrisca-se a aumentar a olhos vistos. E quem diz os gregos diz, com um
pedacinho mais de azar e um pedacinho menos de “Europa”, os venezuelanos. Para
quê ler as tragédias clássicas se podemos protagonizar uma?
Nota de rodapé
Regressado de férias em terras
do tio Trump, confesso-me um bocadinho a leste (ou, para ser preciso, a oeste)
das novidades da pátria. O único assunto do género a perturbar-me o descanso
chegou por via de um telefonema, no qual a minha mãe me informou apavorada de
que o prof. Marcelo estava num desfile de moda a tecer comentários acerca das
“tendências” de vestuário da próxima estação. Ambos, o telefonema e os
comentários, eram redundantes: é sabido que o prof. Marcelo irrompe nos mais
extraordinários lugares a aliviar-se dos mais extraordinários palpites; e é
sabido que a tendência que nos ficaria a matar seria a clássica camisa-de-força.
Na dramática ausência desse
traje, continuamos a julgar-nos no melhor dos mundos: o nosso. A vida avança
por prados verdejantes e, enquanto não surgir o fatal precipício, tudo está
bem. Tudo? Não exageremos. Mal aterrei em Pedras Rubras, o joelho de um sujeito
descolou a caminho do nariz de outro e, quase por desfastio, este abençoado
país descobriu alguma coisa com que se afligir. A subjugação geral a uma
aliança de leninistas e oportunistas não perturba ninguém. O particular
apêndice nasal de um infeliz, operado de urgência, lançou a indignação pela
semana fora.
Porquê? Porque o golpe de
luta-livre aconteceu num campo de futebol, e porque chegámos a um ponto em que
apenas o que acontece aí tem relevância. Falar em anestesia é dizer pouco: a
atenção das gentes esgota-se na bola e nas figuras que, literal ou
figurativamente, correm atrás dela. Um dia, Portugal estoura e, entretidas com
o “Mais Bastidores”, as pessoas nem reparam. Talvez reparem nas consequências.
Ou nem isso, que depois vem o “Dia Seguinte”.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
8-4-2017
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