Gabriel Mithá Ribeiro [foto]
Os heróis multiplicam-se porque, como é
habitual entre cobardes, o fenómeno histórico do racismo deixou de existir nas
sociedades maioritariamente brancas ocidentais. É apenas um cadáver em
putrefação
À boa maneira provinciana, a
agenda mediática portuguesa decidiu apontar baterias a Pedro Passos Coelho. O
líder do PSD vive e viverá compelido a envergar a farda de racista e xenófobo,
entre outros mimos. Os pretextos multiplicam-se.
Há semanas foi a manutenção do
apoio do PSD ao candidato autárquico a Loures, André Ventura, por este ter
abordado – e bem! – questões associadas à integração problemática da minoria
cigana na sociedade portuguesa, como se esse não fosse um problema existente e
como se a simples referência a qualquer identidade coletiva (cigana,
portuguesa, africana ou outra) não implicasse necessariamente uma certa carga
de estereotipação. Sem estereótipos seria impossível qualquer cabeça normal
gerir o sem-número de informações intrínsecas aos objetos que envolvem pessoas,
isto é, sem estereótipos não seria possível qualquer discurso racional sobre a
vida social. Não haveria esquerda, direita, católicos, islâmicos, homens,
mulheres, crianças, etc. A vida social e a sua interpretação equivaleriam a
folhas em branco, num mundo ainda mais absurdo do que aquele que temos. Quem
quiser que experimente pensar sem estereótipos.
Há dias o pretexto foi o de Pedro
Passos Coelho ter referido – e bem! – que compete ao Estado cumprir um dos seus
deveres básicos: proteger a dignidade da identidade portuguesa, prática
indissociável da garantia de condições de segurança no espaço territorial
nacional. Para que se saiba, qualquer Estado existe para regular as relações
com os outros Estados e, necessariamente, para regular as relações da sociedade
acolhedora que tutela com os imigrantes. Não apenas um Estado que não cumpra
essa função será necessariamente um Estado falhado, como também fechar a porta
ao debate público sobre o assunto significa recusar, e de forma grosseira, a
legitimidade da existência de propostas distintas na matéria. Isso é o mesmo
que recusar a liberdade e o pluralismo próprios de uma democracia.
Num momento histórico em que um dos desafios mais sensíveis das sociedades ocidentais é o da xenofilia, uns quantos alucinados esperneiam desalmadamente contra a xenofobia. Num momento histórico em que as sociedades ocidentais integram minorias (raciais, religiosas, sexuais, étnicas) como não acontece noutros locais do planeta e como nunca se verificou no passado, uns quantos alucinados esperneiam desalmadamente contra o racismo existente na Europa e nos EUA.
Estou-me marimbando para o que
pensam, nestas matérias, antixenófobos e antirracistas encartados e respetivas
entidades repressivas que usurparam as funções do Estado numa democracia.
Faço-o com o à-vontade de quem tem um seguro de vida tão simples quanto
estúpido: não sou branco. É nesse mesmo caldo cultural obscurantista que, ainda
assim, Pedro Passos Coelho tem também garantido o seu escudo: um casamento
“multirracial” e “multicultural”.
De forma manifesta ou, bem
pior, de forma latente a importância decisiva conquistada no espaço público por
atributos dessa natureza tão primária como fundamento do direito à liberdade de
pensamento e à legitimidade da palavra sobre temas tão sensíveis demonstra, se
dúvidas existissem, que as discussões sobre xenofobia e sobre racismo não
partem de pressupostos racionais, antes de lógicas tribais primárias. É o que
me permite escrever o que escrevo e é o que permite a Pedro Passos Coelho
escapar à imolação. Sintoma da conquista intelectual do Ocidente pelo
terceiro-mundismo mental.
Por cobardia própria, a
população branca perdeu o direito à sua dignidade identitária como nenhuma
outra pertença racial na face da terra. O facto revela-se ainda mais absurdo
porque os seus controleiros internos – a minoria também branca que tomou de
assalto o espaço público – nem sequer evidencia preocupações morais genuínas ou
de sentido de justiça em relação às minorias. Limitam-se a seguir o instinto
porque a anti-xenofobia e o antirracismo permitem colher votos. A escolha do
alvo Pedro Passos Coelho constitui prova que sobeja. A complementar está a
composição exclusiva ou esmagadoramente branca de grupos parlamentares como os
do PS, PCP e BE em mais de quarenta anos de democracia.
Parece também que os
controleiros esquerdistas acreditam que se não colocarem depressa o açaimo no
homem, Pedro Passos Coelho, depressa veremos nas ruas de Portugal brancos a
matar ciganos e pretos a-torto-e-a-direito. Aqui fica o meu agradecimento
pessoal e público a indivíduos como Fernanda Câncio, Isabel Moreira, Catarina
Martins, Ana Catarina Mendes ou, aqui mesmo no Observador, a Luís
Aguiar-Conraria.
Anoto, no entanto, que tanta
perfeição moral só pode esconder algum defeito, no caso, a necrofilia. Os
heróis multiplicam-se porque, como é habitual entre cobardes, o fenómeno
histórico do racismo (tal como o da xenofobia) deixou de existir nas sociedades
maioritariamente brancas ocidentais. Trata-se de um cadáver em putrefação que
faz com que alguns se percam de amores por ele.
Insisto, por isso, em ideias
que há muito defendo. O que está a acontecer no século XXI é como se, no século
XIX, se tivesse continuado a chamar escravatura ao racismo, apenas porque um e
outro fenómeno tinham elementos em comum. A verdade é que aquilo que os
distinguia, aos olhos da época e bem, era bem maior do que aquilo que os
aproximava. Daí que a escravatura nunca se tenha confundido com o racismo.
Comparativamente e cingindo-me
aos temas em apreciação, as sociedades ocidentais são hoje menos racionais do
que eram no século XIX. Basta qualquer ocidental pensar comparativamente o que
eram as suas sociedades há meio século em matéria de relações raciais e em
matéria de relações com os estrangeiros e no que se tornaram hoje. Tal
comparação permite a qualquer inteligência mediana compreender a fraude
intelectual que é persistir na utilização da palavra racismo no século XXI.
Existem e existirão, sem
dúvida, desafios intrínsecos às relações entre maiorias e minorias.
Porém, as sociedades brancas
ocidentais são as que melhor os resolveram e resolvem comparativamente às
demais sociedades. Continuar a utilizar a palavra ‘racismo’, e o modo como se
faz no debate público e político, serve apenas para perpetuar no tempo o
estigma da população branca. O resultado disso, hoje por demais evidente, é o
do agravamento dos problemas e da violência associada porque a palavra
‘racismo’ impede a identificação dos obstáculos onde eles hoje são
verdadeiramente problemáticos e graves. A saber, fora das sociedades ocidentais
maioritariamente brancas e no interior das minorias raciais, étnicas ou
religiosas que, vivendo nas sociedades ocidentais, integram segmentos que usam
e abusam da sua tolerância como nenhum outro tipo de sociedade admite.
E não é difícil compreender as
razões do fenómeno ter deixado de existir. O racismo é do tempo da
discriminação racial formalmente instituída no interior dos Estados, prática
historicamente ultrapassada no final da segunda guerra mundial (1939-1945) e
nas décadas imediatas que se sucederam. O racismo é do tempo da colonização
europeia, fenómeno que também passou à história vai para meio século. O racismo
é do tempo da guerra fria; é do tempo dos regimes brancos da África Austral; é
do tempo do apartheid sul-africano – conjunto de fenómenos que fecharam em
definitivo o seu ciclo em inícios da década de noventa do século XX quando já
eram historicamente residuais.
Não é possível que os
fenómenos-chave que geraram, enquadraram e alimentaram o racismo tenham sofrido
transformações profundas e irreversíveis ao longo de décadas e, por seu lado, o
racismo, tal como o conhecíamos, permanecer intacto. A postura atual de
antixenófobos e antirracistas europeus e ocidentais constitui inclusivamente um
insulto ao esforço histórico que as suas sociedades de maiorias brancas fizeram
no último meio século. Foram, aliás, as únicas que o fizeram de forma genuína e
com provas dadas. Não conheço outras.
Sendo o racismo um cadáver em
putrefação resta a decência de sepultá-lo.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador,
21-8-2017
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