Alberto Gonçalves
Na Autoeuropa já prometeram outras greves e
é certo que não descansarão enquanto os direitos dos trabalhadores não forem
devidamente acautelados e os trabalhadores acabarem na fila do desemprego.
Janeiro
Embora os pantomineiros do
costume finjam ter visto o povo nas homenagens fúnebres a Mário Soares, a
verdade é que as ditas suscitaram sobretudo indiferença. Os motivos serão
diversos, mas é inegável que o dr. Soares da liberdade e da democracia fora
vítima do dr. Soares antiocidental e “caudilhista” dos últimos anos, longos e
humilhantes. O original falecera há muito, e ninguém o avisou. O povo, pelos
vistos, estava avisado.
Fevereiro
Em países aborrecidos, as
trapalhadas do governo em volta da CGD e do seu novo, e momentâneo, presidente
levariam a demissões sumárias. Aqui, levaram o dr. Centeno a explicar-se nas
televisões. “Explicar-se” é, claro, força de expressão, que os tremores do
homem não deixaram perceber em pleno as frases sem nexo com que tentou
brindar-nos. O prestígio internacional do dr. Centeno talvez tenha começado
nesse instante. Por cá, a oligarquia reduziu a farsa da CGD a “tricas”,
destinadas a esconder os “verdadeiros problemas dos portugueses”. Não há nada a
esconder: por regra, os verdadeiros problemas dos portugueses são as criaturas
que falam nos “verdadeiros problemas dos portugueses”.
Março
O país oficial indignou-se com
a fuga de 10 mil milhões para “off-shores”, uma notícia requentada do “Público”
que, apesar de imaginária ou em última instância irrelevante, procurava mostrar
a vileza do governo de Pedro Passos Coelho. Quase em simultâneo, o país oficial
não se indignou com a Grande Fome ucraniana de 1932-33, cuja condenação no
Parlamento foi rejeitada com a abstenção do PS e a rejeição dos dois partidos comunistas.
Salva-se a coerência “coletivista”, que prefere ver 40 milhões de pessoas
sofrerem às mãos do Estado do que permitir que meia dúzia se livre dele.
Abril
Uma avioneta caiu em Cascais e
foi o pretexto (como se fosse preciso um) para o prof. Marcelo irromper no
local da queda e em todas as reportagens alusivas. Para a TVI, o prof. Marcelo
evitou o pânico. Para o prof. Marcelo, podia ter sido muito pior. Podia, sim
senhor: caso o prof. Marcelo estivesse retido numa sessão de “selfies” em
Valença do Minho, os cascalenses ficariam desorientados e propensos a lançar-se
à Boca do Inferno em quantidades consideráveis. Assim, só houve cinco mortos,
no mínimo motivo de celebrações coletivas. E imensos afetos.
Maio
Portugal, Portugal em peso,
ganhou o festival da Eurovisão, “certame” de avassalador gabarito. Após décadas
de tentativas, mostrámos enfim que somos os maiores ou, pelo menos, tão bons
quanto os melhores, leia-se o Azerbaijão, a Sérvia, a Estónia, a Letónia, o
Mónaco, o Luxemburgo, a Grécia, a Turquia, etc.
Junho
Incêndios florestais arrasaram
Pedrógão Grande e parte dos concelhos vizinhos. Sempre oportuno, às primeiras
notícias o prof. Marcelo assegurou que fora feito tudo o que era possível. O
dr. Costa, uma ministra macambúzia e um secretário de Estado disseram coisas
ainda mais tranquilizadoras. No final, contaram-se, pelos vistos por baixo, 64
mortos, o 16º pior evento do género na História e o terceiro neste século. Para
os poderes públicos, foi igual a nada, ou uma dispensável chatice que os
obrigou a trabalhos para apurar quem se queimava (sem trocadilho) menos com o
assunto. Pouco dado a trabalhar, o dr. Costa partiu para a praia.
Julho
O país viu-se informado de que
desapareceu uma resma de armamento da base militar de Tancos. Mas o ministro da
Defesa fez questão de acrescentar, primeiro, que o roubo não foi dos maiores de
sempre na Europa. Depois, que o roubo se calhar nem aconteceu. Por fim, que o
material roubado apareceu quase impecável. O mal destas notícias é chegarem a
ser notícia. Felizmente, as chefias da Proteção Civil, rigorosamente escolhidas
entre os melhores amigos do dr. Costa, proibiram os bombeiros de opinar sobre
os incêndios. Ao esclarecer que “a informação devidamente organizada e
estruturada é uma mais-valia para todos”, o dr. Costa exibiu relativa
familiaridade com a “teoria da imprensa” de Lenine e maior familiaridade com o
“Público”, o “DN”, a RTP, a TVI e a SIC. Essa história da liberdade é uma
falácia burguesa.
Agosto
A xenofobia é má? Depende. Se
for dedicada àqueles que, nem sei bem porquê, passeiam em férias por este
abençoado país, é altamente recomendada. Em agosto, os portugueses que, a
julgar pelo Instagram, fazem turismo em praias exóticas ou outros lugares
paradisíacos, não deixam de se sentar ao computador, a lastimar os estrangeiros
que fazem turismo no Porto e em Lisboa, no Douro e nos Algarves. É uma atividade
como qualquer outra, com a vantagem de despertar a atenção dos poderes
centrais, locais e adicionais, todos empenhados em dificultar a entrada de
incautos em Portugal ou, no mínimo, infernizar-lhes a estadia. Sujeito a
incontáveis taxas e taxinhas, para não falar das greves dos transportes, do
preço dos combustíveis e das restantes alegrias da vida lusitana, o turista
fica a perceber o que os guias apenas prometem: a realidade indígena. Fica
também vacinado.
Setembro
Os avanços civilizacionais
continuam. Após o respectivo sindicato ser tomado pelo PCP, os funcionários da
Autoeuropa entraram em greve, coisa nunca vista por ali. Entretanto, já
prometeram outras greves e é certo que não descansarão enquanto os direitos dos
trabalhadores não forem devidamente acautelados e os trabalhadores acabarem na
fila do desemprego. O socialismo não se constrói sem umas dorzinhas pelo meio –
e um sofrimento lancinante no fim. Parece absurdo, mas é absurdo.
Outubro
Por inúmeras causas, que
inúmeros especialistas descrevem na televisão, metade do país voltou a arder.
Desta vez, a quantidade de mortos não passou dos 45, insignificância que,
somada aos 64 de junho, serviu para demitir uma ministra. Por este
irresponsável andar, não tarda que 200 cidadãos carbonizados demitam dois
ministros, 300 baixas casuais demitam três ministros, 500 ocorrências a
lamentar demitam um terço do governo e 1000 infelicidades provoquem – o diabo
seja cego, surdo e mudo – a demissão do próprio dr. Costa. Não admira que Nádia
Piazza, a mulher que perdeu o filho em Pedrógão Grande e, estranhamente, não
ficou radiante, seja insultada com regularidade por certo PS: os danos
colaterais não podem comprometer a felicidade da pátria.
Novembro
A saída de Pedro Passos Coelho
foi uma alegria e um alívio para a frente de esquerda, para os comentadores de
“direita” que votam no PS e, aparentemente, para a “direita” propriamente dita.
Num ápice, o PSD arranjou dois candidatos à sucessão. Por coincidência, ambos
parecem mais empenhados em demarcar-se do antecessor do que do dr. Costa.
Ninguém quer carregar a fama de “neoliberal”. Mas não seria mau que, um dia,
nos tocasse um bocadinho do proveito.
Dezembro
Em competição renhida com um
luxemburguês, um eslovaco e uma letã, o importantíssimo dr. Centeno alcançou a
importantíssima chefia do importantíssimo Eurogrupo. Numa notícia não
relacionada, a dívida pública manteve-se em níveis impecáveis. Noutra notícia não
relacionada, todos os partidos, exceto o CDS, aprovaram a isenção do IVA para
os seus negócios. Numa terceira notícia igualmente solta, a autarquia da
capital investiu 57 mil euros em cartolinhas para o Ano Novo. Uma última
notícia avulsa: o Ano Novo tresanda a velho.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
30-12-2017
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