Alberto Gonçalves
Houve um tempo, não muito remoto, em que os
broncos disfarçavam. Pelo menos tentavam. Agora os senhores no poder desistiram
de mascarar o primitivismo. A brutalidade é servida sem filtros nem vergonha
É absurdo falar-se em censura
do humor. Um deputado chamado João Galamba costuma fazer graçolas alusivas às
vítimas dos incêndios e não há quem o impeça. Há dias, a jovem promessa
socialista respondeu no Facebook a alguém que discordava da cartilha oficial
acerca do tema: “Isso deve ser mesmo difícil de digerir. Olhe, vá à farmácia e
compre uns medicamentos para a ansiedade”. Depois de um argumento assim, a
sofisticação está garantida, e a conversa pode saltar das “redes sociais” para
o Parlamento e as televisões que albergam o portentoso raciocínio do sr.
Galamba.
Convém notar que aconselhar a
compra de medicamentos para a ansiedade com o objectivo de ajudar à digestão é
clinicamente discutível. É também uma ligeira variação das recomendações de Rennie
ou Kompensan, populares remédios para a azia e, hoje, popularíssimos
instrumentos retóricos. Num estudo superficial, apurei que cerca de 87,3% das
críticas às minhas crónicas se resumem a preocupações com a hipotética acidez
do meu estômago.
Afirmo que o PS é um refúgio
de trapaceiros sem paralelo no hemisfério Norte? Tomo Rennie e, juram-me, isso
passa. Opino que o “caso” do Montepio é uma golpada inscrita numa longa
tradição de golpadas similares? Ingiro Kompensan que a coisa vai ao sítio.
Sugiro que ambos os candidatos à liderança do PSD representam a abdicação da
alegada “direita” ao sistema que nos arruína e enxovalha? Dissolvo um
Alka-Seltzer e curo-me. Arrisco que a dona Catarina Martins (para quem, aliás,
os resmungos da oposição representam a “azia da direita”), em décadas de
relativa existência, nunca produziu a sombra de uma ideia sequer discutível?
Atafulho-me de Gaviscon e tudo se resolve. Por algum motivo, inúmeros
portugueses convenceram-se de que mostrar cuidados com o refluxo gástrico dos
restantes constitui uma maneira infalível de encerrar, e vencer, qualquer
discussão.
Será conspiração das
farmacêuticas? Duvido. Do que tenho a certeza é da eloquência vigente nas
classes dirigentes e nos seus acólitos não estar exatamente ao nível de um
Lincoln ou de um Disraeli. Mas está, sem tirar nem pôr, ao nível de dois, ou
três, Antónios Costa. Ou quatro. Ou cinco. Ou tantos quantos os sujeitos que
tomaram conta disto e, entre arrotos e gargalhadas, desceram o debate público
aos abismos dos debates de futebol. Não me refiro, evidentemente, aos coitados
que soltam atoardas na taberna a pretexto da bola: refiro-me aos furiosos que o
taberneiro põe na rua e arranjam poiso na CMTV ou nos gabinetes de
“comunicação”. A “azia” omnipresente nas considerações dos maluquinhos dos
clubes, grau zero do pensamento e recurso estilístico que um orangotango se
embaraçaria de usar, contaminou os maluquinhos dos partidos. No fundo, trata-se
de um símbolo da indigência mental em curso e a confissão de que se é bronco e
não se disfarça.
Houve um tempo, não muito
remoto, em que os broncos disfarçavam. Ou pelo menos tentavam. O “eng.”
Sócrates, por exemplo, ainda procurava dissimular as suas extraordinárias
deficiências com os tiques que, na inocência dele, julgava próprios das pessoas
ilustres: passear cursos (que não frequentou), citar livros (que não leu) e
assinar livros (que não escreveu). Agora, os carrocei…, perdão, os senhores no
poder desistiram de mascarar o primitivismo. A brutalidade é servida sem filtros
nem vergonha. E é por isso que o maior perigo da subjugação do regime à
esquerda não é a ameaça à liberdade de expressão: é a ameaça à expressão
propriamente dita. E falada. E, Deus os perdoe, escrita.
O problema, porém, não é a
franqueza. A franqueza com que essa gente desatou a exibir os seus trágicos
limites é apenas um sintoma, sintoma de despreocupação, de arrogância, de
impunidade. Já não é necessário simular polimento, ou um vestígio de regras
civilizacionais, porque a falta de civilidade deixou de ser escrutinada.
Provavelmente, até passou a ser valorizada. Conhecíamos o estilo de ditaduras
descaradas, ou de organizações totalitárias como o PCP e BE, onde o estilo é um
programa. Percebe-se que dois anos de convívio bastaram para contagiar o PS, enfim
livre para cumprir a sua natureza. A “azia” é a versão actualizada do “‘tou-me
cagando”, do rudimentar dr. Ferro. Desobrigados, os que se sentem donos do país
cruzam as pernas em cima da mesa, puxam do palito, aliviam o cinto e esfregam a
barriga: estão à vontade. Mérito deles? Mérito do povo, ou da parte do povo
cuja tolerância é imensa e inversamente proporcional à dos respectivos
proprietários. A julgar pelas sondagens e pela apatia quase geral, o povo
engole a propaganda, os mortos, os bancos, os sindicatos, as raríssimas, os
insultos, o desprezo, o nepotismo e o que calha. Infelizmente, não precisa de
Rennie.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
23-12-2017
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