quinta-feira, 12 de abril de 2012

Desacordos

Luciano Amaral
A pior maneira de discutir o célebre Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é adoptar atitudes heróicas.

Nem os defensores do actual estado de coisas ortográfico são grandes guardiões da língua portuguesa (como se a nossa ortografia tivesse sido sempre assim), nem os defensores do Acordo são desempoeiradas vozes do futuro contra as trevas da tradição (como se houvesse uma terrível luta entre progressismo e reaccionarismo ortográficos).

Na realidade, os defensores do Acordo seguem uma ideia velha pelo menos de um século. Como em muitas outras coisas (a começar pelo regime), a I República quis revolucionar tudo. Por isso, em 1911, adoptou pela primeira vez em Portugal uma ortografia oficial, cujas bases eram essencialmente as mesmas do actual Acordo: a ortografia deveria ser "simplificada", o que implicava abandonar os princípios ditos "etimológicos", de raiz sobretudo grega e romana, e adoptar os princípios ditos "fonéticos" (escrever como se fala). Foi assim que a escrita portuguesa perdeu a pharmácia, a philosophia ou o méthodo. Revolucionarismo e nacionalismo explicam este afastamento em relação às grandes línguas europeias, como o inglês, o francês ou o alemão, e a transformação da grafia portuguesa numa espécie de exotismo. Ainda por cima incompleto, já que não se abandonou totalmente a "etimologia": porquê "directo" e não "direto", ou "hoje" e não "oje"? O resultado é o mostrengo que actualmente se usa e em que vai escrito este texto.

O Acordo continua este caminho infeliz, eliminado certas "consoantes mudas" mas não outras: "espectador" perde o c, mas "homem" não passa a escrever-se "omem" ou "história" não passa a "istória"; assim como na Beira Alta não se escreverá "baca" em vez de "vaca", ou "chuspenchão" em vez de "suspensão". Na realidade, o Acordo baseia-se num princípio contraditório: uniformizar a partir da fonética. Ora, precisamente, a fonética divide mais do que unifica. É por isso que os portugueses devem passar a escrever "receção" mas os brasileiros continuam com "recepção", o mesmo acontecendo com "exceção" e "excepção", e muitas outras. A escrita portuguesa e a brasileira não vão ficar unificadas.
No final, em termos estritamente ortográficos, o Acordo não é bom nem é mau, ou pelo menos é tão mau como o que existe. É mau porque inútil e desnecessário: não resolve nada e unifica pouco. E sobretudo é mau por introduzir confusão onde os escreventes de português tinham já encontrado alguma estabilidade. Com tanta coisa para nos preocupar, ainda faltava começar a dar erros sem na verdade os dar.
Título e Texto: Luciano Amaral, Diário Económico, 12-04-2012

 
Anúncio publicado no jornal ‘O Estado de São Paulo’, 27-05-1895
Relacionados:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-