Maria de Fátima Bonifácio
A D. Isabel dos Santos é quem nos compra
bancos. Os Manuéis Vicentes quem nos usa como lavandaria do seu dinheiro. E se
a nossa Justiça se intromete nas suas vidas, Luanda fecha-nos a porta na cara.
Acabo de ler no “Público” de
22 de fevereiro que a visita oficial de três dias da ministra da Justiça a
Angola foi cancelada e “adiada sine die” por Luanda, resignando-se Van Dunem a
esperar por melhor monção para um “reagendamento” em altura que se coadune com
as conveniências do sr. Manuel Vicente. O atual vice-presidente angolano e
ex-presidente da Sonangol, como é sabido, está formalmente acusado pelo
Ministério Público português de corrupção ativa e branqueamento de capitais.
Esta ousadia, este desaforo, estas ofensas não podiam passar sem retaliação. O
sr. Vicente acha-se no direito de praticar em Portugal as mesmas trafulhices
que pratica em Angola com absoluta impunidade. Portugal que entenda uma vez por
todas que a ex-colónia é mesmo “ex”, que a ex-metrópole é o elo mais fraco da
CPLP, que na ex-colónia “há quem pretenda um mal-estar recorrente com as autoridades
de Lisboa” e que “há angolanos que não se reconciliam com a normalidade entre
Angola e Portugal, e preferem, sempre, a tensão” (escreve o “Público”, citando
“um conhecedor das relações entre os dois países”). A Procuradoria Geral da
República portuguesa emitiu uma carta rogatória solicitando a Luanda a
notificação formal do sr. Vicente, mas Luanda “deverá” alegar que o dito sr.
tem impunidade como membro do governo angolano que é (RTP, 22.02.17, 20h17m).
Não é a primeira vez, nem será a última, que Angola destrata Portugal. O nosso
governo, porém, não se deixa perturbar e anuncia que a viagem do primeiro-ministro àquele país continua a ser preparada, como se nada tivesse acontecido.
E o quê, concretamente, vai António Costa lá fazer? Apresentar cumprimentos a
José Eduardo e jurar-lhe o amor perpétuo de Portugal?
Em muito má hora se congeminou
e se criou em 1996 a CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Esta
agremiação conta desde 2014 com um país – a Guiné Equatorial – que não fala
português e onde os portugueses nunca puseram os pés, para além de ser
governada por um tirano sanguinário que ignora em absoluto o que sejam Direitos
Humanos. O exotismo ou bizarria da CPLP não se fica por aqui. A Comunidade
conferiu o estatuto de “observador associado” a países tão díspares como a
Geórgia, a Namíbia, o Senegal, a Turquia, o Japão, a Hungria, a República
Checa, a Eslovénia, o Uruguai, e não sei se mais algum. (E conferiu também o
estatuto de “observador consultivo” a várias dezenas de instituições de toda a
ordem, desde a Associação Abraço até à Fundação Agostinho Neto, passando pelo
Real Gabinete Português de Leitura, pela Gulbenkian, pela Fundação Eduardo dos
Santos ou pela União das Mutualidades Portuguesas.)
O cidadão comum não vislumbra
que espécie de coerência possa ter aquela salgalhada de “observadores
associados” que nem falam português, nem têm com Portugal ligações históricas
que justifiquem qualquer laço especial com uma associação lusófona. (A exceção
japonesa aconteceu há 400 anos!) A CPLP, cujo objetivo proclamado é o
“aprofundamento da amizade mútua e da cooperação dos seus membros”, foi na sua
origem uma tentativa para criar um pequeno “Commonwealth” lusitano e dar ao
mundo o exemplo de uma reconciliação generosa e amistosa entre ex-colónias e
ex-colonizador, agora associados em pé de igualdade para em conjunto
potenciarem sinergias. Este intuito inicial, hoje em dia praticamente
irreconhecível, foi já de si um produto da mistura de motivações pouco
recomendáveis. São elas, consoante os entusiastas: serôdio saudosismo imperial,
má consciência por uma descolonização desastrosa, desejo de conferir a Portugal
um simulacro de projeção internacional, e interesses econômico-financeiros
obscuros e ciosamente ocultos por todos os implicados nesta engenharia
pós-colonial. Aos olhos do cidadão comum, uma vez mais, só a promoção de tais
interesses parece alimentar a precária existência da CPLP.
De que Império poderemos ter
saudades? Depois de um século XV de facto glorioso, não tardámos a revelar a
nossa fraqueza, a nossa impotência. As nações pobres não são talhadas para
edificar impérios, marítimos ou territoriais. Logo na primeira metade do séc.
XVI começou a debandada do Norte de África; em 1550, a nossa bandeira já só
tremulava na fortaleza de Mazagão, última relíquia portuguesa num Magrebe por
onde, em 1415, se iniciara a portentosa aventura dos Descobrimentos, o nosso
único momento histórico com verdadeira grandeza épica. Dobrado o Cabo da Boa
Esperança, Vasco da Gama alcançou a Índia em 1498, e em 1500, sob o comando de
Pedro Álvares Cabral, aconteceu o “achamento” do Brasil. Era, ou parecia que
era, um nunca mais acabar de proezas.
Mas o Império da Índia nunca
chegou a firmar-se e, frágil e acidentado, no final do séc. XVII estava
acabado. Malgrado a superioridade esmagadora da nossa artilharia, e a
ferocidade com que era usada contra embarcações inimigas ou rivais e contra os
rajás e populações indígenas que combatiam com armas primitivas a intrusão
portuguesa naquelas paragens, os portugueses nunca chegaram a estabelecer o
domínio indisputado do Índico, nem a firmar uma efetiva e organizada ocupação
territorial. O domínio português “era no mar uma anarquia de roubos, na terra
uma série de depredações sanguinárias” (O.M.). Apesar do esforço dos reis D.
Manuel I e D. João III, dos Almeidas, dos Albuquerques e dos Castros
(vice-reis), para impor e disciplinar uma ocupação metódica, com regras e leis,
esse domínio, sempre vacilante embora brutal e até selvático, nunca perdeu a
sua dupla marca genética de pirataria e saque violentos. “Anarquicamente
iniciada, a ocupação da Índia foi, de princípio ao fim, uma exploração
anárquica.” (O.M.) A Índia era uma antiquíssima e opulenta civilização; possuía
metais e pedras preciosas a rodos, tecidos finíssimos, sedas magníficas,
madeiras raras e, além disso, as cobiçadíssimas especiarias e a rainha delas, a
Pimenta. Para comerciar com a Índia era preciso dinheiro vivo, porque pouco ou
nada tínhamos que lhe interessasse para a troca. Logo nos alvores do séc. XVI o
Estado, por carência de capitais, enveredou pelo arrendamento, através da
feitoria real de Antuérpia, de monopólios de especiarias a comerciantes alemães
e italianos sedeados no Noroeste europeu, relacionados com os Fugger e os
Welser, gigantes comerciais e financeiros que operavam à escala de uma
economia-mundo em acelerada expansão.
Em fins de Quinhentos e
começos de Seiscentos, as remessas da Índia caem drasticamente, pois o comércio
das especiarias e outros produtos orientais, nunca inteiramente arrebatado aos
árabes e venezianos, foi passando para mãos holandesas e inglesas. A
incapacidade para combater e aniquilar a belicosidade árabe no Índico e,
sobretudo, a concorrência dos holandeses e ingleses que no século XVII
demandavam o El Dourado do Oriente e viam nos portugueses, durante o domínio
filipino (1580-1640), súbditos do rei de Espanha com quem estavam em guerra,
ditaram uma forte retração da nossa presença em tais lonjuras, em benefício de
uma decidida viragem atlântica. O Brasil, imensa terra de ninguém, esparsamente
habitada por uns índios primitivos ainda meio confundidos com a natureza,
parecia mais ao alcance dos nossos meios e mais conforme com a nossa
localização geográfica. Não foram poucas nem fáceis as vicissitudes da
colonização do Brasil, desde as agruras do desbravamento dos sertões, passando
pelas muitas e ferozes sublevações dos índios até à invasão holandesa do
Nordeste nas duas décadas finais do período filipino e ulterior reconquista
(1637) dos territórios ocupados por uns milhares de luso-brasileiros. Foram
imensas as riquezas que a coroa portuguesa de lá extraiu; várias toneladas de
ouro entraram em Portugal anualmente ao longo do comprido reinado de D. João V
(1706-50), para não mencionar as pedras preciosas e as madeiras exóticas. Mas o
Brasil transformou-se rapidamente e duradoiramente numa economia de plantação
de açúcar, o que exigia infinitamente mais braços do que os havia localmente
disponíveis. E, por isso, Angola foi até à abolição da escravatura no Brasil,
um processo legislativo que decorreu entre 1850 e 1888, não mais do que uma
dependência – da colónia brasileira e, depois, do Império do Brasil.
Graças a Portugal, a
independência do Brasil (1822) sob a égide do filho primogénito de D. João VI,
D. Pedro IV, que foi investido imperador constitucional e, portanto, preservou
ali o princípio monárquico, o imenso Brasil não se retalhou em várias
repúblicas independentes e conservou-se uno, ao contrário do que sucedeu na
América Latina espanhola. Este terá sido porventura o feito mais notável de
toda a nossa história colonial, ou talvez mesmo o único feito verdadeiramente
notável.
Mas Angola, para a qual só
acordámos no último quartel de XIX, a meu ver ainda hoje se ressente do seu
longo e doloroso passado de alfobre de escravos destinados aos engenhos
brasileiros, bem como do seu passado de escravatura em solo angolano. Os vários
regimes de trabalho negro adoptados ao longo da República e depois do Estado
Novo, se é que amenizaram as condições de vida do trabalhador indígena, nunca
chegaram a considerar o angolano como um cidadão de pleno direito e corpo
inteiro. Acresce que as guerras coloniais – e nós estivemos em guerra com
Angola durante treze anos – são ainda piores do que as guerras civis. Estas
deixam cicatrizes terríveis, muito mais terríveis do que as guerras entre
Estados. Mas as feridas abertas pelas guerras coloniais ficam a arder em ódio
ainda mais tempo, e, quando acontecem, não saram, não se apagam, ou só saram e
se apagam passadas várias gerações. E não se esqueça um último fator agravante
do ponto de vista português: Portugal democrático, excetuando os dois mandatos
de Cavaco Silva como primeiro-ministro, viveu sempre à beira da bancarrota. A
população angolana vegeta na mais negra penúria, mas os que a governam e lhe
impõem novas formas de servidão e perpetuam antigas formas de miséria, esses
dispõem de um país imenso para explorar. Entre diamantes e petróleo, Angola, ao
contrário de Portugal, é um país riquíssimo, de cuja riqueza se alimenta uma
oligarquia cleptocrata e tirânica, e que olha para Portugal como um parente
pobre indesejável. A criatura rebela-se contra o criador. A D. Isabel dos
Santos é quem nos compra bancos e empresas. Os Manuéis Vicentes são quem usa
Portugal como lavandaria para o seu dinheiro. E quando a Justiça portuguesa se
intromete nas suas vidas, Luanda fecha-nos a porta na cara. Nada tem a temer: o
nosso primeiro ministro lá irá à mesma compor ou mendigar alguma coisinha.
Moçambique, porque é mais
pobre, tem menos potencial e não possui um historial de escravatura semelhante
ao de Angola, abstém-se de nos enxovalhar. Mas na cerimónia oficial de julho de
2016, em que se comemorou o 20º aniversário da promissora associação lusófona,
sempre foi dizendo, pela boca do secretário moçambicano da altura, que a CPLP
não deveria nem poderia limitar as opções geoeconômicas e geoestratégicas dos
países-membros. Ou seja, cada um deles é livre de seguir o caminho que mais lhe
convenha, independentemente do interesse de conjunto dos outros parceiros, se é
que tal interesse de conjunto existe. A CPLP, como escrevi neste jornal
(“Amarga irrisão, a da nossa Lusitânia”), não passa, antes do mais, de uma
associação de interesses relacionados com o petróleo e hegemonizada pelos
países que o possuem: Angola, Brasil, Timor-Leste e… fatalmente, a Guiné
Equatorial, o terceiro produtor do ouro negro em África.
Em fins de outubro do ano
passado houve nova Cimeira em Brasília. Portugal fez-se representar ao mais
alto nível: Presidente da República, primeiro ministro e ministro dos Negócios
Estrangeiros. A princípio, Marcelo e Santos Silva desafinaram (“Público”,
2.11.16): o ministro “pediu a abolição imediata da pena de morte na Guiné
Equatorial”; o Presidente “considerou feita [a ratificação pela Guiné dos estatutos
da CPLP] e [julgou] a moratória sobre a pena de morte satisfatória”. O ministro
queixou-se de que a ratificação não fora depositada na sede da CPLP, como se
exige, e lembrou que além disso a abolição da pena de morte e a introdução do
ensino da língua portuguesa eram condições de uma adesão “legítima”. No que
ambos se mostraram de acordo foi em lembrar que nenhum deles estivera na
Cimeira de 2014 em Díli, na qual se concedeu à Guiné Equatorial o estatuto de
membro da CPLP (“Público”, 2.11.2016), ou seja, que não eram responsáveis pela
entrada do país de Teodoro Obiang para a comunidade lusófona. Por fim, “cerca
de uma hora depois” – presumo que na conferência de imprensa no final da
Cimeira – Marcelo falou pelos três: afinal a ratificação dos estatutos estava efetuada,
deram-se “passos para a valorização da língua portuguesa” e “ficou claro que
vão ser aprofundados [passos] no domínio da garantia dos direitos humanos”.
Um cidadão lê e pasma. O que
se terá passado entre as primeiras declarações dissonantes de Marcelo e de
Santos Silva e a conferência de imprensa conjunta? Que influências se moveram?
Que empenhos se manifestaram? Que interesses se impuseram? Toda esta história
da CPLP é um mistério que o povo português tem o direito de querer ver esclarecido.
Das duas uma: ou as coisas são apenas o que parecem, e então Portugal deveria
muito simplesmente retirar-se da CPLP; ou não são o que parecem e a realidade é
demasiado feia para nos ser revelada. Também neste caso não deveríamos lá
permanecer. A nossa permanência não emenda a “trágica descolonização”; não
credibiliza uma espécie de mini-Commonwealth para os saudosistas do Império;
não promove uma reconciliação séria e sincera com as ex-colónias em nome de uma
História que não foi comum, porque história comum, longa em séculos, só tivemos
com o Brasil.
Porque não nos dizem, em vez
de frases pomposas e vácuas, o que Portugal ganha efetiva, real e palpavelmente
com a CPLP?
Título e Texto: Maria de Fátima Bonifácio, Observador,
25-2-2017
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