Rui Ramos
Pedrógão Grande já é a maior vergonha desta
democracia. Um mês depois, ninguém explicou, ninguém pediu desculpa, ninguém se
demitiu, e o Estado nem sequer resolveu as dúvidas sobre o número de mortos.
Havia o segredo de Estado;
António Costa inventou uma nova figura política: a ignorância de Estado. Não
sabe, por exemplo, quantos pessoas morreram em consequência do incêndio de
Pedrógão-Grande, de modo a pôr termo às dúvidas. Não sabe, de facto, uma
infinidade de coisas sobre a maior tragédia em Portugal nas últimas décadas:
como foi possível, o que falhou, etc. Outros governos preocupar-se-iam, talvez,
com esta manifestação de ignorância. Mas António Costa parece muito confortável
em não saber nada.
Na imaginação popular, o poder
político é frequentemente identificado com informação privilegiada. Mas não é o
segredo de Estado que António Costa invoca para se abster no caso de Pedrógão
Grande. É o contrário: é o direito de não saber, de não estar informado, de
nada ter para dizer, de se limitar a fazer perguntas ou de esperar que outros
respondam. É um direito estranhíssimo.
De facto, António Costa não
diz apenas que não sabe. Diz mais: diz que, num caso que deixou quase toda a
gente insegura e desconfiada, não tem de saber: “o governo não contabiliza os
mortos”. Em suma, não compete ao governo estar informado e informar. Tal como
não competia ao Ministro da Defesa conhecer a segurança dos depósitos de
material de guerra do Estado, nem à Ministra da Administração Interna estar a
par da eficiência do SIRESP. Para defender o desconhecimento, surgiu até a
ideia de submeter o número de vítimas ao abrigo do segredo de justiça, o que é
notável: desde quando um dado destes esteve sob sigilo, judicial ou outro, numa
democracia? É fatal, num ambiente assim, que se multipliquem dúvidas e teorias
da conspiração. O governo não se pode queixar.
Pela nossa parte, passamos a
ter o direito de suspeitar dos motivos desta ignorância de Estado. Parece-se
demasiado com uma vontade de fugir a quaisquer responsabilidades, recorrendo ao
princípio mais elementar: se ninguém conseguir provar que o governo sabia,
antes ou depois, então ninguém pode reclamar que o governo e os organismos que
tutela deveriam ter prevenido, atuado eficazmente, ou remediado. O segredo de
Estado pressupunha responsabilidades especiais da parte dos governantes; a
ignorância de Estado implica que a governação é isenta de responsabilidade,
mesmo da chamada “responsabilidade política”.
António Costa, como tanta
gente já notou, parece fugir desesperadamente de tudo o que é má notícia. De
que tem medo? Podemos admitir muitas hipóteses. É, no entanto, difícil escapar
à razão mais óbvia. Este é um governo saído de uma derrota eleitoral e fundado
na aliança de um partido europeísta com dois partidos anti-europeístas, isto é,
críticos da democracia tal como se desenvolveu em Portugal no contexto da
integração europeia. Para qualquer um dos sócios da atual maioria, a aliança só
é suportável se correr bem, ou seja, se a única causa de disputa for a partilha
do crédito pelas boas notícias. Ninguém alinhou nesta experiência para
partilhar reveses, transtornos ou dificuldades. Daí talvez o pânico perante
tudo que possa sobressaltar a narrativa da
governação-enquanto-sonho-cor-de-rosa. Daí, também, a preocupação doentia com a
linha editorial das televisões, notória nos comentários governamentais à compra
da Media Capital, ou com o acesso dos jornalistas aos bombeiros: à ignorância
de Estado convém, previsivelmente, a ignorância nacional.
Pedrógão-Grande é a maior
vergonha do atual regime. Morreram dezenas de pessoas, por falhanço de um
Estado que continua a falhar: passado mais de um mês, ninguém desfez as
incertezas mais básicas, ninguém explicou, ninguém pediu desculpa, ninguém se
demitiu, e parece que o dinheiro da solidariedade ainda está para chegar a quem
precisa. Que fazer com um governo que parece que só existe verdadeiramente
quando Portugal ganha o Festival da Canção?
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
25-7-2017
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