Rui Ramos
Porque é que Salazar impediu que as cheias
de 1967 fossem discutidas livremente? Porque previu que uma oposição “indigna”,
como agora a do PSD e CDS, "aproveitaria" a tragédia para atacar o
governo.
A oligarquia no poder não é a
melhor fonte para percebermos o que é lícito e moral. Esta semana, os oligarcas
deram-nos a boa nova de que vivemos em democracia, isto é, num regime em que
podemos perguntar e discutir tudo livremente, ao contrário do que acontece em
ditadura. Ao mesmo tempo, porém, disseram-nos esperar que não fizéssemos
perguntas nem discutíssemos a tragédia de Pedrógão-Grande, como alguns
políticos e jornalistas, porque isso seria “aproveitamento político”, o que é
“imoral” e, portanto, inaceitável. Em que ficamos? Pode-se ou não discutir
tudo? Até onde chega a democracia em Portugal?
O que é “politizar”? Politizar
é discutir publicamente, é exigir informações, é reclamar responsabilidades.
Mas se não é legítimo fazer isso a propósito de um desastre que matou 64
pessoas em circunstâncias por esclarecer e em que se suspeita de falhas graves
dos serviços públicos, para que serve então a liberdade pela qual os oligarcas
pedem que nos regozijemos?
Dir-me-ão: ah, mas os que
querem debater Pedrógão-Grande só o querem fazer por malícia oposicionista,
para incomodar o benemérito estadista Dr. António Costa. Pois sabem porque é
que o Dr. Salazar não deixou que as mortíferas cheias de Lisboa em 1967 fossem
livremente noticiadas e discutidas? Exatamente porque previu logo que uma
oposição “indigna e irresponsável”, como agora a do PSD e do CDS, iria
“aproveitar” os mortos para atacar o governo.
A censura existia para impedir
que se fizesse “política” com coisas que, para os salazaristas, eram matéria
exclusiva de administração séria e serena. Segundo o Dr. Salazar, Portugal
estava cheio de gente muito mal-intencionada, “sem sentido de Estado”, que
usava tudo, incluindo as vítimas de inundações, para “semear a dúvida e a
desconfiança” contra aqueles que faziam a Portugal o grande favor de o
governarem. Por isso, não era possível saber o número de mortos, nem discutir a
atuação dos serviços públicos, nem analisar as causas da tragédia: tudo isso
era “fazer política”, uma coisa que os salazaristas, como agora o Dr. Costa, o
PCP e o BE, acharam sempre muito despropositado.
A democracia tem de facto este
inconveniente, que António Costa e os seus acólitos comunistas e neocomunistas
tanto lamentam: os cidadãos, imagine-se, começam logo a abusar da liberdade
para “fazer política” com temas inconvenientes para o governo. Ora, o problema
é que os temas inconvenientes para o atual governo são muitos, são todos
aqueles que, por qualquer razão, podem desarranjar a lenda do “sucesso” e das
“boas notícias”, tão cuidadosamente cultivada desde há quase dois anos. Por
isso, falar de sistemas de emergência que não funcionam ou de armas roubadas à
vontade nos paióis do Estado é “aproveitamento político”, uma coisa “imoral”,
pela qual devia haver pedidos de desculpa. Até porque nem faltam temas
legítimos de discussão, como, por exemplo, a vitória no Festival da Canção, que
ainda não foi suficientemente analisada (nomeadamente, no sentido de reconhecer
a responsabilidade do governo na vitória de Salvador Sobral).
Chegamos portanto a este
ponto: à necessidade de dizer mais uma vez que a tragédia de Pedrógão Grande,
por causa dos 64 mortos e por causa das legítimas suspeitas de preparação e de
desnorte dos serviços do Estado, pode e deve ser “politizada”, isto é, ser objeto
de debate público, de investigação jornalística e de iniciativas parlamentares,
e que é essa “politização” que verdadeiramente distingue a democracia da
ditadura, e não apenas a existência de uma liberdade de que só pudéssemos
usufruir quando não incomoda o governo.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
28-7-2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-