Helena Matos
É aqui que está o logro em que a geração de
Cavaco Silva caiu: a ideologia não fica na gaveta. Muda é de gaveta. O controlo
ideológico das nossas vidas é a gaveta que agora está no centro da questão.
O Governo anuncia que quer
dados étnicos nos censos. Mas isso não era racismo?
Mariana Mortágua não percebe a
polémica com a retirada dos livros da Porto Editora. Mas isso não era censura?
Na Auto Europa vê-se a força
do PCP. Mas o PCP não se tinha convertido à democracia, usando a sua força
sindical para defender os trabalhadores?
… Parece um mundo às avessas,
mas é apenas um mundo ordenado pelo ritmo e pelo pensamento dos radicais. É
sempre assim. O que causa espanto não é a agenda dos radicais, mas sim a
vontade de acreditar que eles mudam.
Como aqui escreveu Rui Ramos a propósito da intervenção de Cavaco Silva na
Universidade de Verão do PSD, acreditaram os homens da geração do ex-Presidente
da República que nos tinham libertado do vírus das revoluções ao anularem o
confronto ideológico entre a esquerda e a direita. De facto, a geração política
de Cavaco Silva acreditava que a amenidade da vida numa doce e civilizada
Europa seria mais que suficiente para garantir a razoabilidade dos eleitorados,
devidamente balizados à direita pela democracia cristã e à esquerda pelos
socialistas democráticos.
Tudo isto se traduziu em
Portugal numa visão paternalista da extrema-esquerda (a atitude para com a
extrema-direita foi outra). Para ilustrar as contradições dessa gente que
publicamente maldizia o sistema, mas vivia confortavelmente instalada nele,
contavam-se com bonomia histórias como a do compagnon de route que
nos idos de 1975 confidenciara a um celebrado cantor de protesto que se o PCP
ficasse a governar ele fugiria. Ao que o cantor, tido como irredutível
comunista, teria respondido, pedindo segredo: “Eu também!”
O PCP quase parecia um rancho
folclórico; a foice e o martelo um adereço vintage; os trotsquistas
mais o dr. Louçã desempenhavam um papel incontornável no denunciar da corrupção
e do que na legislação e na administração sobrara da ditadura.
Depois chegou o bafio versus
as causas fraturantes. A família, a educação, a natalidade, o casamento… tudo
isso era bafio, bafiento, ranço que no fundo eram sempre um resquício do país
cinzento e triste do salazarismo. Até que chegava o dia em que, devidamente
apadrinhado pela extrema-esquerda, o assunto se transformava em causa fraturante
e entrava no paradigma do “ainda”: “Portugal ainda não tem legislação”;
“Portugal ainda não permite”; “Portugal ainda mantém”…
Implícito ao “ainda” estava o
sentido único da História: os amanhãs não cantariam, mas nós, por via da
“abertura de mentalidades” (os governantes deixaram de querer governar, a
abertura de mentalidades tornou-se o seu principal desígnio) aderiríamos mais
cedo ou mais tarde ao que os promotores da causa fraturante em questão já
tinham decidido ser bons para nós.
Apesar do imparável frenesim
dos radicais na introdução de novas causas vivia-se convicto que laboriosas
regras orçamentais a par dos superiores valores da democracia e um cumprimento
rigorosamente institucional dos procedimentos seriam suficientes para nos
preservar de tentações autoritárias e derivas populistas. Acreditava-se que
deste modo seríamos tolerantes e razoavelmente governados senão para sempre
pelo menos por largo tempo.
Tendo sido isso verdade
durante alguns anos tornou-se rapidamente numa armadilha: o centro só falava de
economia, mas os extremos só tratavam da ideologia.
Os primeiros a sentirem na
pele as consequências desse logro do campo democrático foram os socialistas.
Com programas assentes na redistribuição de rendimentos, os socialistas ficaram
sem propostas quando a crise chegou e em países como a França e a Grécia os
seus eleitorados foram engrossar as hostes da extrema-esquerda. Ou como
acontece em Espanha, os socialistas acabaram a discutir o próprio país.
Em Portugal o trajeto dos
socialistas teve características únicas: primeiro foi Sócrates e os seus mil casos.
Depois, em 2015, os socialistas tomaram uma opção cujas consequências não se
conseguem ainda avaliar: não viabilizariam uma solução governativa ao centro –
que país seríamos hoje se isso tivesse sido possível? – e optaram por fazer
seus parceiros os radicais. A estes últimos pagam os socialistas em poder na
máquina estatal e em legislação ideológica. Não é um acaso a multiplicação dos
poderes de comissões e comissariados, verdadeiras correias de transmissão
política, constituindo um mundo paralelo que ninguém escrutina e de cujas
decisões não se recorre: por exemplo, se as indignadas criaturas tivessem
recorrido para a Justiça, a Porto Editora alguma vez teria sido levada a
retirar os livros do mercado?
De repente tudo é ideológico.
À excepção das Finanças. De facto, como Cavaco Silva lembrou, Tsipras aplica
medidas de austeridade, Hollande frustrou todas as expectativas nele
depositadas para derrotar a disciplina orçamental e, em Portugal, António
Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa fazem cativações. Esta espécie de
choque com a realidade levou estes governantes, segundo Cavaco Silva, a “pôr a
ideologia na gaveta”. É aqui que está o logro em que a geração de Cavaco Silva
caiu: a ideologia não fica na gaveta. Muda é de gaveta. A ideologia fica aliás
com rédea solta para se instalar em todas as gavetas à excepção da das
Finanças. A cada obrigação que se cumpre para com os credores lá temos mais uma
gaveta entregue nas mãos de um Mário Nogueira, de uma comissária para isto ou
para aquilo, mais uma gaveta-programa anunciada pelo ministro Eduardo Cabrita…
Aquilo que António Costa tem
para dar aos radicais para contar com o seu voto, o seu silêncio, a sua
propaganda enquanto trata de “pôr a ideologia na gaveta” nas relações com o BCE
é tão só deixar que cada gesto do nosso quotidiano seja visto, avaliado e
julgado pelo crivo ideológico dessa gente a quem deu estatuto governamental.
Quando esta aventura
socialista acabar não sei como estarão as Finanças do país, mas as nossas vidas
essas estarão sem dúvida menos livres.
P.S.: A deputada Paula Teixeira da Cruz declarou que qualquer alteração legislativa no sentido da legalização da eutanásia não requer revisão constitucional. Se esta sua tese vingar temos de
admitir que o texto constitucional português é a versão escrita da pastilha
elástica.
Título e Texto: Helena Matos,
Observador, 3-9-2017
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