Sérgio Pardellas
Quarta agremiação a atravessar
a Sapucaí, a Paraíso de Tuiuti fez história no Carnaval do Rio. Não por
investir no tom político, temperado com críticas sociais –, batida esta tão
louvável quanto essencial, embora mais surrada do que abadá de folião na quarta-feira
de cinzas. Mas, sim, por inaugurar a indignação seletiva, a flexibilidade ética
e o contorcionismo retórico ao desenvolver seu enredo na avenida. Foi, de fato,
histórico. Raras vezes o cinismo e a capacidade de adulterar os fatos
desfilaram tão lépidos e faceiros no berço do samba. Não impressiona. A
propósito, não vai aqui nenhum libelo autoritário. No quesito liberdade, estou
e sempre estarei ao lado de Hannah Arendt, Ayn Rand e Rosa Luxemburgo, para
quem ela (a liberdade) “é, apenas e exclusivamente, a dos que pensam de maneira
diferente”. Agora, face ao clássico questionamento do sambista, igualmente Rosa
(o Noel), “com que roupa eu vou?”, a Tuiuti sair-se-ia de maneira mais digna,
espinha ereta, se tivesse escolhido um figurino menos hipócrita.
Atemo-nos aos dois “pontos
altos” da passagem da escola: a chamada ala de “manifestoches”, integrada por
passistas caracterizados de verde e amarelo como se fossem marionetes, numa
alusão aos manifestantes a favor do impeachment de Dilma, e o carro alegórico
que ombreava a recente modernização da legislação trabalhista ao trabalho
escravo – destaque para a representação de um vampiro “neoliberalista” (sic)
com uma faixa presidencial cruzando-lhe o peito, numa referência a Michel
Temer. Bem, como se já não bastasse o desrespeito a milhões de brasileiros que
legitimamente ocuparam as ruas para protestar contra o governo do PT, caso
houvesse a preocupação com a fidelidade aos fatos, a ala “manifestoches” jamais
poderia escolher ideologia. Pois somente a enviesada opção pela revolta
seletiva faria com que uma escola descartasse os mortadelas, aqueles
manifestantes que, a soldo, foram instados a criar o esdrúxulo, embora
minoritário, “protesto a favor” das gestões petistas. Bingo! Foi o que a Tuiuti
fez. Para a escola, se os fatos prejudicam as narrativas, pior para os fatos.
Se ainda restava alguma dúvida
sobre o viés ideológico da agremiação, o carnavalesco Jack Vasconcelos fez
questão de imprimir cores definitivas à realidade que já gritava. Declarando-se
admirador de outra Rosa – não a Luxemburgo, mas a Magalhães, da Imperatriz – e
provavelmente sem entender bulhufas do outro Rosa (o Noel), Jack disse sem
corar a face que o ímpeto questionador e o afloramento do espírito crítico da
Paraíso de Tuiuti têm a ver, repare só, “com a troca de governo”. Antes, sob as
administrações do PT, justificou o carnavalesco, a escola era “parceira do
poder” e “não podia arranhar a relação”. Segue o baile: “Enredos mais críticos
não eram incentivados”. Ah, tá …
A cereja do bolo guarda
relação com os petardos lançados contra a recém-aprovada Reforma Trabalhista.
Pois não é que a Paraíso de Tuiuti, em 2017, contabilizava apenas três
trabalhadores regidos pela CLT e, em 2018, não empregou ninguém com carteira
assinada? Ou seja, a escola pratica com impressionante desenvoltura aquele
provérbio transformado em lei maior em nosso País, ao qual caberia apenas uma
pequena adaptação: em terra de Tuiuti, cada um cuida de si. É como a marchinha
de Carnaval: “quem sabe, sabe, conhece bem”. Que o diga Raphaella Pontes, filha
da jornalista Liza Carioca, morta ano passado após ser atropelada pelo carro
abre-alas da Paraíso de Tuiuti. Enfim, deu Beija-Flor.
Título e Texto: Sérgio Pardellas, IstoÉ, 15-2-2018
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-