Alberto Gonçalves
Em teoria, eu deveria achar
certa graça à fúria com que os ciganos investem contra o Estado. Na prática, a
graça perde-se no zelo com que reclamam os respectivos benefícios.
Durante o Estado Novo, os
jornais fintavam a censura mediante palavras ou expressões que diziam mais do
que o explícito: ainda que tosco, o “código” permitia ler o que não estava
escrito.
Hoje, no Estado Novíssimo a
que chegámos, pouco mudou. A censura e os “códigos” mantêm-se, simplesmente a
primeira é obra dos próprios jornalistas e os segundos, sempre toscos, pretendem
ocultar em vez de revelar.
De acordo com o “Jornal de
Notícias”, “pelo menos quatro indivíduos agrediram dois enfermeiros, um
auxiliar de enfermagem e um segurança, na triagem do serviço de Urgência do
Hospital de São João, no Porto, terça-feira à noite”.
Segundo a RTP, “profissionais
de hospital do Porto [foram] agredidos por grupo que tentou atropelar polícia”.
O “Sol” confirma que “grupo
[tentou] atropelar polícia depois de agredir enfermeiros no Hospital S. João”.
O “Público” esclarece que
“cerca de dez pessoas estiveram envolvidas nos desacatos”.
O “Expresso” volta a
esclarecer: “um grupo de aproximadamente dez pessoas – familiares que
acompanhavam um doente – agrediu com ‘socos e pontapés’ dois enfermeiros, um
auxiliar e um segurança da unidade de saúde”.
O “Diário de Notícias” avança
com um motivo: “enfermeiros agredidos no Hospital de São João devido à demora
no atendimento”.
Aqui o Observador fala num
“‘número indeterminado’ de pessoas” que “agrediram selvaticamente quatro
profissionais do serviço de urgência”.
Quem será essa violenta e
indeterminada gente? Neoliberais em protesto contra a função pública? Uma
misteriosa associação de Lesados do Estado? Claques da bola? Uma delegação de
homeopatas? Alcoólicos anônimos? Alcoólicos identificados? Cientologistas?
Xintoístas? Os “media” não explicaram e, palpita-me, a polícia anda igualmente
à nora. A menos, claro, que os responsáveis pela investigação olhem para as
“caixas” de comentários nos sites dos “media” citados, onde os participantes em
rodapé perceberam num ápice que “o grupo”, “os indivíduos” ou as “pessoas” eram
uma festiva agremiação de ciganos.
Ciganos, vírgula, que essa é
designação caída em desuso e punida pela moral. É preferível falar de
indivíduos de etnia cigana. Porém, se não queremos parecer brutos, é melhor
falar de membros do povo rom (“roma” é plural – isto é importantíssimo). Aliás,
sobretudo se o assunto envolve delinquência ou crime, o ideal é nem falar de
nada e de todo. Dá-se a notícia de forma vaga, com o tipo de hesitação cautelosa
que por exemplo marca os atentados cometidos por camiões ou navalhas nas
cidades europeias. O fundamental é evitar a discriminação.
Também não aprecio
discriminações e, por princípio, não vejo grande utilidade em mencionar a
“raça” dos causadores de uma baderna. A questão é que, exceto se se aceitar um
conceito discutível, não interessa definir os ciganos enquanto “raça”, e sim
enquanto cultura. Uma cultura coesa e ancestral, com valores tradicionais e uma
série de comportamentos relativamente padronizados e reconhecíveis. Um
comportamento típico, que 99% dos profissionais de saúde poderão certificar,
consiste em invadir hospitais ao berro e abandoná-los ao pontapé.
Os ciganos possuem inúmeros
comportamentos típicos, muitos deles com o curioso recurso ao berro e ao
pontapé. Tudo decorre da peculiar maneira com que essa comunidade olha o mundo
“exterior”: um território de privilégios infinitos e zero deveres. Em teoria,
eu deveria achar certa graça à fúria com que os ciganos investem contra o
Estado (por razões que não vêm ao caso, apetecia-me invadir a Direção Geral de
Energia com uma bazuca). Na prática, a graça perde-se no zelo com que reclamam
os respectivos benefícios. Outras características fascinantes passam pela
amabilidade que dispensam às mulheres, o empenho que devotam à educação e,
descontados os carros, os televisores e demais pechisbeques, a abertura a
qualquer avanço civilizacional posterior ao século VII.
Um estudioso da temática, que
conheci em tempos, garantia-me que a cultura cigana é a do atraso de vida.
Tamanha franqueza limitava-se ao consumo privado. Em público, a vigilância da
linguagem e do pensamento obriga a que se repitam clichés gordurosos acerca da
“identidade” e da “integração” como se os conceitos não fossem frequentemente
incompatíveis. E como se a culpa pela evidente marginalidade dos ciganos fosse
nossa.
Admita-se que a culpa é um
bocadinho nossa (embora não seja minha). Permitir, sob determinados e absurdos
critérios, que um conjunto de cidadãos saltite por aí à revelia da lei e dos
hábitos não é exibir tolerância: é conceder impunidade. E – Estrebuche-se à
vontade – notar este desagradável facto não é “racismo”, “xenofobia”,
“preconceito” ou “discriminação”. Discriminação é tratar alguém de modo
diferente. E, através do cínico “respeito” pela “diferença”, condenar milhares
de criaturas a uma existência quase primitiva, além de condenar as suas vítimas
a tratamento médico.
Eu sei. Sei que generalizo.
Sei que nem todos os ciganos gostam de demolir propriedade e costelas alheias.
Nem todos utilizam a escola dos filhos para receber subsídios. Nem todos
habitam a espécie de limbo em que o país os largou. Acontece apenas que, à
semelhança dos chineses e o arroz, ou dos sindicalistas e o parasitismo, uma
razoável quantidade de ciganos exerce, sem a sanção dos pares, as atividades
que os celebrizaram. Até que os ciganos decentes evitem os restantes, evito-os
eu – se puder. Os “media” podem.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
17-2-2018
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