João Pereira Coutinho
Já tenho viagens marcadas para ver (pela
última vez?) os quadros de Caravaggio (provável homicida), as esculturas de
Cellini (violador afamado) ou as composições de Gauguin (machista, misógino,
pedófilo) antes que os zelotes em fúria invadam os museus para destruir o
recheio
EM 2017, rebentou um movimento
nos Estados Unidos com a missão meritória de denunciar e punir crimes sexuais.
Nota prévia: acabar com esses crimes não é uma missão feminista, muito menos
feminina. É uma causa que qualquer ser bípede, com funcionamento cerebral
regular, entende e apoia.
Acontece que o espírito
original despertou outros fantasmas pelo caminho. E um deles foi saber se é
possível separar a "obra" do "homem", ou seja, se um homem
vicioso (com as mulheres, mas não só) pode ser apreciado como um criador
virtuoso.
Nestas matérias, repito o
adágio: o que me interessa no artista não é o que ele é; é o que a sua obra nos
revela sobre aquilo que ele gostaria de ser. Mas estes preciosismos perdem-se
rapidamente entre a matula – e nem Portugal escapa.
Aqui há uns meses, lembro-me
de uma minipolémica sobre Rentes de Carvalho. O escritor tinha declarado em
entrevista que votaria Geert Wilders nas eleições holandesas. Foi o que bastou
para que colegas de ofício declarassem publicamente que jamais voltariam a ler
um dos seus livros, embora não tenham estendido o mesmo raciocínio para os
livros do (comunista) José Saramago.
Vejo agora que os acusadores
de Rentes estavam perfeitamente sintonizados com a moda do tempo. Todos os
dias, lá vem mais um artigo a questionar se devemos ler/ver/ouvir o livro/o
filme/o disco de fulaninho X, que batia na mulher e foi visto um dia a olhar
lascivamente para uma galinha.
A conclusão lógica deste
"pensamento" (digamos assim) é que só autores santos, com vidas
imaculadas e obras tão previsivelmente nulas quanto as suas existências podem
ser admirados em segurança. Uma exigência tão delirante que, pelas minhas
contas, enterra toda a história da arte ocidental.
Pela minha parte, confesso que
vou tomando medidas para essa possibilidade. E não há semana em que não me
arruíne em livros, discos ou filmes que, mais cedo ou mais tarde, estarão
proibidos por aí.
A minha casa, em rigor, já não
é uma casa. É um bunker pós-apocalíptico, onde as latas de feijão foram
substituídas pelas obras completas de delinquentes (delinquentes de direita,
perdoe-se o pleonasmo) como Céline, T. S. Eliot, Pound ou Knut Hamsun.
De resto, já tenho viagens
marcadas para ver (pela última vez?) os quadros de Caravaggio (provável
homicida), as esculturas de Cellini (violador afamado) ou as composições de
Gauguin (machista, misógino, pedófilo) antes que os zelotes em fúria invadam os
museus para destruir o recheio, à boa maneira talibã.
"Se é gostoso faz logo,
amanhã pode ser ilegal", dizia Millôr Fernandes. Eis a sabedoria de um
profeta.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, revista Sábado, nº 718, de 1 a 7 de fevereiro de 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-