sábado, 3 de fevereiro de 2018

As fogueiras das vaidades

João Pereira Coutinho

Já tenho viagens marcadas para ver (pela última vez?) os quadros de Caravaggio (provável homicida), as esculturas de Cellini (violador afamado) ou as composições de Gauguin (machista, misógino, pedófilo) antes que os zelotes em fúria invadam os museus para destruir o recheio
 

Flagelação de Cristo, óleo sobre tela, Caravaggio, 1607
EM 2017, rebentou um movimento nos Estados Unidos com a missão meritória de denunciar e punir crimes sexuais. Nota prévia: acabar com esses crimes não é uma missão feminista, muito menos feminina. É uma causa que qualquer ser bípede, com funcionamento cerebral regular, entende e apoia.

Acontece que o espírito original despertou outros fantasmas pelo caminho. E um deles foi saber se é possível separar a "obra" do "homem", ou seja, se um homem vicioso (com as mulheres, mas não só) pode ser apreciado como um criador virtuoso.

Nestas matérias, repito o adágio: o que me interessa no artista não é o que ele é; é o que a sua obra nos revela sobre aquilo que ele gostaria de ser. Mas estes preciosismos perdem-se rapidamente entre a matula – e nem Portugal escapa.

Aqui há uns meses, lembro-me de uma minipolémica sobre Rentes de Carvalho. O escritor tinha declarado em entrevista que votaria Geert Wilders nas eleições holandesas. Foi o que bastou para que colegas de ofício declarassem publicamente que jamais voltariam a ler um dos seus livros, embora não tenham estendido o mesmo raciocínio para os livros do (comunista) José Saramago.

Vejo agora que os acusadores de Rentes estavam perfeitamente sintonizados com a moda do tempo. Todos os dias, lá vem mais um artigo a questionar se devemos ler/ver/ouvir o livro/o filme/o disco de fulaninho X, que batia na mulher e foi visto um dia a olhar lascivamente para uma galinha.

A conclusão lógica deste "pensamento" (digamos assim) é que só autores santos, com vidas imaculadas e obras tão previsivelmente nulas quanto as suas existências podem ser admirados em segurança. Uma exigência tão delirante que, pelas minhas contas, enterra toda a história da arte ocidental. 

Pela minha parte, confesso que vou tomando medidas para essa possibilidade. E não há semana em que não me arruíne em livros, discos ou filmes que, mais cedo ou mais tarde, estarão proibidos por aí.
A minha casa, em rigor, já não é uma casa. É um bunker pós-apocalíptico, onde as latas de feijão foram substituídas pelas obras completas de delinquentes (delinquentes de direita, perdoe-se o pleonasmo) como Céline, T. S. Eliot, Pound ou Knut Hamsun.

De resto, já tenho viagens marcadas para ver (pela última vez?) os quadros de Caravaggio (provável homicida), as esculturas de Cellini (violador afamado) ou as composições de Gauguin (machista, misógino, pedófilo) antes que os zelotes em fúria invadam os museus para destruir o recheio, à boa maneira talibã.

"Se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal", dizia Millôr Fernandes. Eis a sabedoria de um profeta. 
Título e Texto: João Pereira Coutinho, revista Sábado, nº 718, de 1 a 7 de fevereiro de 2018

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