Rui Ramos
Poderá o nosso regime funcionar sem
cumplicidades, sem favores, sem arranjos, sem ganhos ilegais? Ou é aquilo a que
chamamos "corrupção" a única maneira de o regime existir?
A pouco e pouco, nada escapa:
governantes, presidentes de câmara, altos funcionários, professores (suspeitos
de violar o segredo dos exames), banqueiros, gestores de grandes empresas,
dirigentes dos maiores clubes de futebol, presidentes de associações de
solidariedade, juízes, magistrados… há alguma classe ainda fora da lista dos
arguidos?
Perante a subida da maré, com
a água pelos joelhos, a oligarquia deita a mão a tudo o que promete flutuar. Há
os que se escondem atrás das costas largas do “populismo”, queixando-se muito
da suposta aliança entre o ativismo da justiça e o sensacionalismo da imprensa.
Mas que querem? Se houve quebra da lei, a justiça não deve atuar? Se a justiça atua,
a imprensa deve conservar-se silenciosa?
Há ainda os que preferem
escarnecer: uns bilhetes de futebol, por amor de Deus. Pois, uns bilhetes de
futebol. Mas uns bilhetes de futebol a troco de quê? As autoridades têm a
obrigação de investigar. Pequenos favores podem ser a impressão digital de grandes
promiscuidades, isto é, de um regime em que a lei não é igual para todos, por
exemplo, para aqueles que podem usar bilhetes de futebol para acelerar
processos. Mário Centeno, depois da sua imprudência, terá certamente sido o
primeiro interessado em que tudo fosse esclarecido.
Percebemos porque o regime
anda tão nervoso. Para além das prevaricações que possam ter ocorrido e ser
provadas em tribunal, o que começa a ficar à mostra é a rede opaca de contatos,
de cumplicidades, de jeitos e de favores que une entre si a oligarquia do
regime. Chamamos-lhe “corrupção”, e com essa palavra, pensamos em gente a
enriquecer ilegalmente. Mas — e se esta for também, para além de quaisquer
ganhos ilegais, a maneira de o regime funcionar? E se tivermos aqui, nos arranjos
e nas amizades que ligam os seus figurantes uns aos outros, a relojoaria
profunda do regime, sem a qual não pode existir?
Talvez esta rede seja a
explicação para esse facto bizarro, que é os políticos proporem e aprovarem
leis que depois os apanham. Julgarão porventura que, graças ao sistema de que
fazem parte, nunca estarão sob o seu alcance? Que haverá sempre uma toga amiga
a cobrir eventuais processos? Compreendemos também assim como, quando lhes
acontece terem subitamente de enfrentar um magistrado, alegam com tanta
convicção que estão a ser perseguidos. De facto, num regime em que toda a gente
anda geralmente protegida, que outra razão poderia haver para alguém ser
suspeito e acusado, a não ser uma perseguição?
Nas situações mais
desesperadas, há um último recurso: as tribunas televisivas e eleitorais. No
Brasil, Lula da Silva dá o exemplo: condenado por unanimidade em última
instância, com provas que a defesa não conseguiu refutar, ei-lo decidido a ir a
votos, como se a democracia tivesse sido inventada para livrar políticos
corruptos de expiar as culpas. Talvez resulte, porque o povo já uma vez
escolheu Barrabás. Mas isto, segundo os mestres de moral, já não é “populismo”:
populismo é denunciar e investigar a corrupção, não é usar eleições para fugir
à prisão. Por cá, Marques Mendes prevê que José Sócrates possa ser tentado pelo mesmo
expediente.
Veremos. O Dr. Johnson disse
que o patriotismo era o último refúgio dos canalhas. Estará a democracia, em
certos países, destinada a ser o último refúgio dos arguidos e dos condenados?
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
3-2-2018
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