sexta-feira, 3 de junho de 2011

Somos todos otários - Diferenças entre Neymar e Messi

Gustavo Poli
Muito, ou demais, citamos Fernando Pessoa – e sua autopsicografia (o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente). Citamos tanto que virou clichê. Mas a tentação de citá-lo aqui é grande – porque esses quatro versos resumem um pouco o tema desta pequena crônica.

Desde Leônidas, olhamos futebol – e sentimos futebol – como um espetáculo mais que competitivo. Vemos ali o componente artístico, estético – um componente que nos faz achar razoável pagar dinheiro grande para assistir 90 minutos de Barcelona. Que nos faz olhar para um ingresso de jogo do Messi como se fosse um ticket de concerto de Mozart.

“Eu vi, eu vi Mozart de perto” não é uma frase qualquer. “Pelé teve um só – como Beethoven”, por sua vez, é uma frase … do próprio e sempre modesto Pelé. Pois bem, como sabemos, Pelé e Mozart nem sempre estão disponíveis. E o mesmo futebol que nos oferece um Barcelona de Messi (um Santos dos anos 60, um Ajax dos anos 70) por década – nos oferece também o outro lado da moeda. A arte menor – e ruim – da falsificação.

Desde que começa a chutar qualquer bola, o jogador brasileiro aprende a ser malandro. Seu primeiro verbo é driblar. E driblar o que vier pela frente – seja adversário, juiz ou regras. É isso que nos garante a produção de craques-em-série. Mas nos garante também a produção de falsos malandros em série.

São muitas as diferenças entre Neymar e Messi. Estilo, penteado, característica, potencial. Messi é um craque mundial. Neymar pode vir a sê-lo. Hoje, porém, há algo que os separa de forma precisa: Messi não se joga. Quando cai é porque foi derrubado. Neymar, como todos os atacantes brasileiros, aprendeu a fazer do mergulho uma tática.



Há uma relação inversamente proporcional entre jogar muito – e se jogar muito. Na média, Neymar até que se joga pouco (dado que apanha muito). Mas Messi não se joga nunca. Mesmo quando apanha, levanta. Mesmo quando sofre a falta – tenta não cair. Puxe pela memória – qual foi a última vez que você viu Messi rolar, depois de uma falta, como tivesse sido estrangulado em campo? Pois é…

Enquanto isso, no campeonato brasileiro, temos um ator-cigano-igor por partida. O jogador brasileiro se tornou um fingidor de poema. Se joga tanto que demonstra todo tipo de dor – a dor que sente, a dor que não sente, a dor que já sentiu, a dor que foi ali e voltou, a dor imaginária, a dor surreal. Qualquer faltinha produz um gemido de cálculo renal.

Você já viu o filme – um sem-número de vezes. O atacante dribla, o defensor faz a falta. Há o salto – e a queda. O juiz apita. O defensor se indigna como um deputado flagrado com dinheiro no exterior. O atacante cai – urrando e ganindo como um cachorro abatido por jamanta. E caído, fica, esperneando, girando, até que… de repente, com o bálsamo milagroso dos segundos, a dor desaparece. Ele levanta, mancando por um instante, e de repente não manca mais. Sai correndo, lépido e fagueiro, rumo à área.

E ponto. Nenhum remorso, nada. O estádio inteiro acompanha esse exercício ostensivo de cara-de-pau – e tudo bem. Nenhum cartão, nenhuma culpa. O sujeito rouba ali minutos do espetáculo e do adversário – e tudo bem. Em Inter 0 x 1 Ceará, oito minutos e nove segundos foram perdidos em tiros-de-meta. Isso é quase 10% do jogo. E tem, claro, a ver com cera. O juiz deu cinco minutos, depois mais um, de acréscimo – mas ainda assim não chegou perto de abater o tempo perdido.

O teatro ornamental brasileiro é a norma. Estamos acostumados com ele. E essa tolerância fala muito sobre nosso jeito de ser – as aparências importam. Se, por acaso, elas derem na pinta, se pegar mal… vamos tentar deixar de lado pra ver se ninguém se toca. E já que a regra é essa – joguemos todos de acordo com ela. Os torcedores só se irritam quando a malandragem é do time adversário. Nos acostumamos a torcer pela cera de nosso time – a aplaudir o jogador que cai no gramado fingindo uma contusão para preservar o resultado. Vale tudo pela vitória, não vale? Nossa indignação seletiva – capaz de organizar marcha pela maconha em tempo de enriquecimento de sigilo – é assim mesmo.

O hábito de deitar é o lado B de nosso futebol-arte. Quando todo mundo é malandro, quem é o otário? Há uma diferença sutil entre ser malandro – e tentar ser malandro. O vício horizontal é tão arraigado – e tão antigo – que o jogador brasileiro é o único do mundo que, muitas vezes, prefere o pênalti ao gol. Prefere se jogar, esperar a falta, a ficar diante do goleiro com a bola nos pés.

Os juízes até começaram a marcar nossos hypolitos-boleiros – aqueles que acreditam que grande área é sinônimo de duplo twist carpado. Mas o escavador de penalidade é apenas o sintoma mais evidente da doença. O tempo perdido para atendimento médico em campo, no Brasil, é um acinte. E treinadores e médicos são cúmplices no processo – porque se acostumaram a jogar esse jogo. Se acostumaram a mandar jogador cair, rolar e ganir quando seu time está ganhando.

Acabamos de ver o Barcelona gastar a bola contra o Manchester – e adoramos a escassez de faltas. Há menos faltas lá fora – e o jogo corre mais – mas não é apenas por causa da arbitragem – que deixa o jogo correr. Sim, há faltas não marcadas, lá como cá, e há apitos engolidos. Mas aqui temos um excesso de malandragem em todas as direções. O juiz que tenta punir – dar cinco, seis, sete minutos de acréscimo – é ponto fora da curva.

Isso só vai mudar quando todos entenderem que estamos, coletivamente, sendo otários. A tradição da esperteza gera um círculo vicioso – eu faço cera hoje porque fizeram contra mim ontem – e deu certo. É mundo cão, amigo – se você não passar a perna… vão te passar. Nossa impunidade anciã – aquela que faz todo mundo se achar malandro por ter carteirinha de estudante aos 60 anos – como se o dono do cinema não soubesse.

O único remédio conhecido é punir. E punir de forma exemplar. Talvez seja pedir muito num país em que réu confesso de assassinato demora sete anos pra ser preso. Mas sonhar, pelo menos, continua sendo baratinho na Terra de Vera Cruz.
Texto: Gustavo Poli
Recebido de Janda Mendez

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