Massamá, 20-06-2011, foto: JP |
A desvalorização daquilo que é entendido como problema pelos que vivem em Lisboa é uma constante. Porque “quem sempre viveu em Lisboa, ou quem foi da periferia para Lisboa, não lhe passa pela cabeça gastar hora e meia em transportes”, afirma Costa Pinto.
Esses querem estar perto de tudo, viver a cidade, ter uma oferta cultural à porta, querem fazer percursos a pé, concentrando as várias dimensões do seu modo de vida num espaço restrito controlável. Ao contrário, o referencial de cidade central e a acessibilidade nem sempre são valorizados nas periferias. “Há uma apetência para desvalorizar o contexto, o enquadramento ambiental, o contexto urbanístico, e há uma valorização das questões da casa e da vida familiar no interior da mesma, como se a casa fosse uma ilha, independentemente do sítio onde se está.” A mobilidade, a centralidade e a acessibilidade são relegadas para segundo plano, em favor de uma casa nova e maior.
A lógica de expansão urbana nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto iniciou-se nas décadas de 1950 e 1960, acompanhando o processo de industrialização. Desde os anos 60 que Lisboa perde população, o que significa que os subúrbios não são alimentados apenas a partir dos fluxos do interior do país, mas também do interior de Lisboa em direção às periferias. Um movimento explicado pela dispersão na oferta de empregos e serviços na área metropolitana e, claramente, pelas lógicas habitacionais.
“Ter uma casa na periferia custa menos do que em Lisboa”, diz Teresa Costa Pinto. Mas há outras razões. A degradação do parque habitacional do centro faz com que muitos saiam também à procura de melhores condições habitacionais. Desvaloriza-se o velho, a cidade velha, privilegia-se o novo, a cidade nova. Para lá de questões pragmáticas, hátodo um simbolismo em ser-se proprietário de um apartamento novo, amplo, com condições, com garagem, a um preço acessível.
“Algumas pessoas da periferia até estariam disponíveis para viverem em sítios recuperados, mas o facto de não poderem ter o carro disponível aflige-os”, diz Graça Dias, lembrando que, por oposição, os centros históricos correm o risco de ficarem artificiais, por causa do turismo e das ruas pedonais. “O automóvel pode ter o seu lugar na cidade velha. Quando se transformam as ruas em zonas para fazer turismo e ouvir peruanos a tocar guitarra, as coisas passam a ser artificiais.”
Espaço de experimentação
O ideal de cidade, hoje, na Europa, parece ser qualquer coisa compactada, com uma escala humana de construção, com bairros sustentáveis e intimistas. Longe, portanto, da ideia clássica de subúrbio, associado a uma imagem negativa – como se fosse um espaço de ausência onde falta tudo, os equipamentos, as acessibilidades, os serviços.
Mas, na última década, tem havido um processo de autonomização dos concelhos limítrofes de Lisboa. “Tem havido um crescimento policêntrico disseminado”, explica Teresa Costa Pinto, com o aparecimento de novos centros que coexistem com o centro da metrópole. Estes novos centros têm vindo a especializar-se em oferta cultural, de serviços, parques tecnológicos, parques de empresas, parques de escritórios.
Viver hoje na periferia não é, portanto, a mesma coisa do que há dez ou 15 anos. João Seixas vai mais longe, referindo que a Grande Lisboa tem hoje dinâmicas de tal forma complexas que “as condições suburbanas também existem no centro de Lisboa”. Há uma grande baralhação de referentes, com condições de cosmopolitismo, por exemplo, a irromperem longe do Chiado. Se do ponto de vista da regeneração da paisagem física, como diz Graça Dias, ainda há um longo caminho a percorrer, do ponto de vista cultural essa regeneração já se sente.
“Há zonas que as elites culturais consideram suburbanas que são mais multiculturais e plurais, com mais espaço para experimentações sociais, culturais e educativas do que em muitos bairros de Lisboa”, diz João Seixas.
Não por acaso, em países como França ou Inglaterra, é nos subúrbios que irrompem a maior parte das movimentações culturais mais arriscadas. O fato de serem espaços híbridos, onde pessoas de origens diferentes coabitam, pode originar tensão ou então potenciar a criatividade. “Aqui há muitos brasileiros e africanos, mas nunca senti nenhum problema por isso. Aqui toda a gente se dá bem”, diz-nos Marcos Areal, empregado de café, como muitos dos seus compatriotas brasileiros a habitarem a zona.
20-06-2011, foto: JP |
O primeiro-ministro de Portugal nasceu em Coimbra e passou a infância entre Silva Porto e Luanda, em Angola, onde o pai exercia medicina. Quando regressou, estudou no liceu em Vila Real. Durante parte do consulado de Cavaco, viveu no Bairro da Picheleira e depois na Amadora, onde foi vereador, após ter perdido a eleição para presidente da câmara. Nas ações de campanha, em 1998, surgia ao lado de um grupo musical cabo-verdiano. A mulher, Laura, nasceu na Guiné-Bissau. Em casa ouve-se ópera, mas também morna cabo-verdiana. Há partilha das tarefas domésticas, referem vários artigos. Nas entrevistas, Pedro Passos Coelho faz questão de afirmar que sempre viveu como qualquer cidadão da classe média. “Já o vi aí, á noite, depois do jantar, a passear com os cães, parece uma pessoa cordial”, diz-nos Maria Angelina, 32 anos, designer de interiores, atualmente à procura de trabalho. “Quem o conhece aqui diz que não é pessoa de luxos e realmente isto não está para grandes luxos”, ri-se ela.
São quatro da tarde de um dia de semana em Massamá e tudo parece tranquilo. Avistam-se alguns estudantes. Um carro passa com música hip-hop em altos berros. Há movimento à porta do spa da Rua da Milharada. Numa das marquises, alguém estende a roupa. Maria Angelina vai à farmácia, depois ao centro comercial, mais tarde à escola buscar o filho e não sente falta de nada em comparação com Lisboa. “Os meus amigos de Lisboa acham sempre que isto não tem vida e que as pessoas se limitam a vir aqui dormir. Percebo que o diagm, mas estão erradas. Ao fim de semana, enquanto o centro de Lisboa está quase deserto, aqui os cafés enchem. Talvez o tempo aqui seja mais complicado de gerir, entre levar a criança à escola, o caminho para o emprego e o regresso, mas mesmo isso não sei.”
Os últimos Censos provam que nos concelhos de Oeiras, Cascais, Amadora, Loures ou Almada existe capacidade de retenção da população. Estão menos dependentes de Lisboa, conseguindo atrair emprego dentro do próprio concelho. E isso é particularmente sentido entre os mais jovens, que podem estudar e ter oferta lúdica e cultural própria – perto de Massamá existe, por exemplo, o espaço cultural Fábrica da Pólvora de Barcarena. As periferias já têm vida própria. “Nas minhas aulas, quando se discute os processos de suburbanização e as questões identitárias, existe defesa do local de habitação por quem vive na periferia”, afirma Costa Pinto. “É um espaço familiar, onde estão enraizados e têm amigos. Não admitem associá-la a uma imagem negativa”. “Pelo contrário”, continua Teresa Costa Pinto, “a imagem negativa é associada sempre a Lisboa – como espaço de anonimato, de poluição, de não-vivência.” “Lisboa, para elas, é apenas um local de passagem.”
Por um lado, é um sintoma positivo, sinal de que os espaços se autonomizaram. Por outro, existe demasiada focagem no local de habitação e desconhecimento do que está à volta, ou seja, o mesmo tipo de postura que os do centro têm para com os da periferia.
O Portugal moderno habita, essencialmente, nas grandes regiões metropolitanas de Lisboa e Porto. É aí que muitos problemas irrompem, mas é também aí que novas possibilidades podem ser criadas e fragilidades reparadas. Terá o primeiro-ministro, pelo fato de habitar num espaço com características semelhantes à da maior parte da população, maior sensibilidade para eles? “Viver num determinado local molda o caráter das pessoas”, considera João Seixas. “Mas temos de ter em atenção que as paisagens são cada vez mais móveis e esquizofrénicas.” Será uma oportunidade ter um primeiro-ministro que vive na periferia, se este revelar um reconhecimento territorial ajustado? Depende, argumenta Seixas: “Ele pode ter um maior conhecimento das necessidades da grande região de Lisboa, em comparação com uma pessoa que viva no centro e não saiba sequer onde é Massamá, mas não é certo.”
O que é certo é que do ponto de vista simbólico é relevante. O próprio Pedro Passos Coelho pode jogar com isso. “É alguém que não é da Lapa, de Campo de Ourique, do Parque das Nações ou das Avenidas Novas e isso tem relevo”, continua João Seixas.
“Porque é que as pessoas que estão no poder têm de ser muito diferentes das outras?”, interroga Graça Dias. “Espero que tenham a capacidade de ver mais longe, mas isso não significa que tenham de vir de um local ou de uma origem específica.”
Voltamos a Joaquim Alvarães, agora bem mais calmo. ”O Lula da Silva não era operário? No início toda a gente desconfiava dele, depois todos diziam que ser operário lhe tinha permitido perceber melhor os verdadeiros problemas do Brasil.”
Vítor Belanciano, “Cidades”, jornal “Público”, 19-06-2011
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