Paulo Tunhas
A decisão de Trump sobre Jerusalém rompe
com a hipocrisia vigente quando se fala do Médio Oriente, que tudo na aparência
igualiza para na verdade sistematicamente condenar Israel desde o princípio
Sendo, na aparência, um dos
poucos portugueses que não é cidadão dos Estados Unidos da América, pouco falo
de Donald Trump. No máximo, com as raríssimas pessoas com quem falo de
política, o que me vem à cabeça é dizer que, com a exceção de Donald Trump,
tudo conspira para me fazer simpatizar com Donald Trump. Não é um raciocínio
muito elaborado, mas confesso que ao ler notícias em jornais onde, a partir de
uma fotografia de Trump com os atacadores do sapato direito desapertados, se
elaboram desenvolvidas doutrinas sobre a sua política nacional e internacional,
é aquilo de que sou capaz.
No entanto, o seu
reconhecimento ontem de Jerusalém como capital de Israel, no seguimento de uma
decisão do Congresso americano datada de 1995, levou-me a sentir com ele um
acordo que antes nunca experimentei inteiro. Porque, na malsã atmosfera de
hipocrisia política em que se vive, o gesto não é despiciendo e manifesta,
contrariamente ao que por aí imediatamente se escreveu, alguma sensatez. Traz
problemas? Traz, sem dúvida. Mas representa a possibilidade de um novo início
das coisas, que rompa com a hipocrisia vigente quando se fala do Médio Oriente,
que tudo na aparência igualiza para na verdade sistematicamente condenar Israel
desde o princípio. Não digo que a hipocrisia não seja por vezes necessária em
política (e, de resto, nas relações humanas em geral) e não tenha, em certas
situações, bons frutos. Acontece que neste caso preciso nenhuma necessidade a
guia e os frutos são maus.
Em 2003, publiquei
conjuntamente com Fernando Gil um livro intitulado Impasses, seguido de Coisas
vistas, coisas ouvidas, por Danièle Cohn. O livro lidava com a reação ocidental
ao 11 de Setembro e ao terrorismo islâmico, incluindo um capítulo sobre a
segunda guerra do Golfo. Antecipando tudo o que se dirá e escreverá por estes
dias acerca de Israel, fui reler algumas páginas então escritas. Reproduzo aqui
uma passagem do livro. Dada a sua extensão, decidi omitir as referências ao que
então era a opinião comum do muito que se publicava. Guardo apenas uma que é
particularmente ilustrativa. Miguel Sousa Tavares explicava por essa altura que
Israel é “a maior ameaça à paz mundial”, continuando: “Se algum dia o planeta
implodir, vai ficar a devê-lo a Israel e à dependência política do
establishment americano relativamente ao lobby israelita dos Estados Unidos”.
Israel, note-se, é “a maior ameaça à paz mundial”. O que se segue, entre aspas,
é o que no livro é dito em relação a essa doutrina comum, com que teremos de
voltar a conviver em breve, sobre Israel. Limitei-me, tirando pequenos detalhes,
a alterar o texto num ponto: duas afirmações citadas vêm agora com os seus
autores devidamente identificados. (Quando escrevemos o livro, Fernando Gil e
eu optámos por não referir diretamente os autores, porque o que nos interessava
era estabelecer o quadro geral de uma atitude dominante na opinião publicada no
que respeitava ao pós-11 de setembro.)
“A questão de Israel é
infinita. Os pontos serão, portanto, aqui seletivos. O ódio a Israel não foi
sempre, muito pelo contrário, uma característica da Esquerda. Ele acompanha-se
da descoberta, nessa mesma Esquerda, de uma paixão, a que nada historicamente a
obrigava, pelo terrorismo. Israel é uma sociedade democrática (segundo qualquer
um dos critérios ao nosso dispor: critérios que remontam ao exemplo do exercício
da sociedade ateniense no século V a. C.), rodeada de sociedades que, segundo
esses mesmos e exatíssimos critérios, não são, nem de perto nem de longe,
democráticas.
“O ódio a Israel relaciona-se
com uma tendência relativamente recente de uma parte substancial da Esquerda a,
em linguagem e em ato, abandonar os patamares da democracia. O ódio a Israel –
e, diga-se por fim, a palavra ódio não é exagerada – tem a ver com o desprezo
crescente que essa mesma parte da Esquerda ostenta pelos regimes do Ocidente e
pelas democracias representativas (“socialmente fascistas”, nas palavras do
Prof. Boaventura Sousa Santos). Israel é objeto do desprezo que só timidamente
– e por vez ou outra mais atrevidamente – se enuncia em relação à democracia em
geral.
“Percebe-se. Israel: sociedade
democrática responsável por si mesma. Israel: sociedade onde os atos do Governo
são fiscalizados e censurados através do voto. Israel: sociedade onde os
cidadãos livremente se manifestam contra as decisões políticas do seu Governo.
Israel: sociedade onde a vida dos cidadãos é livre, onde, entre outras, as
coisas do amor são abertamente discutidas. Israel: sociedade onde o masoquismo
“suicida-ideológico” não faz parte dos costumes políticos e onde, como otimamente
Alain Finkelkraut escreveu um dia, não se encontra nenhuma disposição para
“expiar os horrores da história ocidental”, porque parece aos seus cidadãos – e
não se vê como lhes negar autoridade para essa reflexão – “terem sofrido eles
próprios mais do que lhes calhava nesse capítulo. Israel (ainda nas palavras de
Alain Finkelkraut): “pequena nação: pequena em superfície; pequena em número de
cidadãos; pequena no sentido mais profundo em que a sua existência não se
encontra automaticamente garantida, em que permanece contestada trinta e cinco
anos depois da criação do Estado [Finkelkraut escrevia em 1983]”. Israel:
sociedade cuja autodefesa – os problemas são esses, e não os mais alambicados
da “autoestima” – se joga dia-a-dia, contra terroristas que assassinam
cegamente. Israel: voltemos ao princípio – sociedade democrática.
“O ódio a Israel é o ódio
recalcado que uma parte do Ocidente vota a si mesmo. Não é acidental que as
críticas à democracia e as críticas a Israel se fundam no mesmo gesto. Elas
transcendem largamente a preocupação com os sofrimentos que palestinianos ou
israelitas experimentam no seu dia-a-dia. De facto, nada disso conta – nada
disso tem de contar. O que interessa é a questão da existência, pura e simples,
de Israel: é ela que está perpetuamente em causa. Tal como a da democracia.
“O jornalista (Miguel Sousa
Tavares) que escreve que Israel é “a maior ameaça à paz mundial”, diz, sem
obviamente o dizer com as palavras todas, que a democracia é a maior ameaça à
paz mundial. Quando, levado pelo seu alegre raciocínio, conclui: “se algum dia
o planeta implodir vai ficar a devê-lo a Israel”, diz (continuando a não se
servir das palavras todas) que a democracia é a causa da destruição do mundo. E
pode bem ser que venha a ter razão. Esperemos que não, mas pode ser que sim. Em
todo o caso, não convinha que falasse como se estivesse a falar defendendo a
democracia: o que ele pede é que se abdique de tudo. Não de várias coisas
acidentais e secundárias, nem sequer daquilo que poderíamos pensar, com razão
ou sem ela, ser o essencial – mas de tudo; nada mais e nada menos do que de
tudo. Está, em suma, a pedir uma coisa impossível. Em primeiro lugar,
impossível para ele mesmo. Mas não está, sem dúvida, a ser original.”
Citei esta longa passagem –
escrita, repito, em 2003 – porque o que vem aí vai ser mais do mesmo. Não é que
Israel não seja continuamente demonizada. É-o, de facto, sem interrupção. Não
há cantor pop que não se veja policiado pelos profissionais dos “boicotes”. Mas
a intensidade aumentará por estes dias. Entre outros por aqueles que, em nome
de “negociações de paz” que se perpetuam de modo puramente fantasmático,
desejam a todo o custo manter uma ficção que lhes é conveniente: a da
possibilidade de um acordo entre quem quer continuar a existir e aqueles que
apenas desejam a destruição. O que Trump fez tem pelo menos um mérito:
introduzir um novo princípio num estado de coisas onde nenhuma solução
verdadeiramente era possível. Pelo menos, com Jerusalém como capital de Israel,
as coisas ficam mais claras. O que a médio prazo só pode ser bom.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 7-12-2017
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