quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

O Saque de Roma, um castigo misericordioso

Roberto de Mattei

O Saque de Roma, Francisco Javier Amérigo (séc. XIX), Museu do Prado, Madrid
A Igreja vive uma época de desvio doutrinário e moral. O cisma é deflagrado na Alemanha, mas o Papa não parece dar-se conta do alcance do drama. Um grupo de cardeais  e de bispos propugna a necessidade de um acordo com os hereges. Como sempre acontece nas horas mais graves da História, os  eventos se sucedem com extrema rapidez.

No domingo, 5 de maio de 1527, um exército descido da Lombardia entra no Gianicolo [uma das sete colinas de Roma]. O Imperador Carlos V, irado pela aliança política do Papa Clemente VII com o seu adversário, o rei francês Francisco I, tinha feito avançar um exército contra a capital da Cristandade. Naquela noite, o sol esvaneceu-se pela última vez sobre a beleza deslumbrante da Roma renascentista. Cerca de 20.000 homens, italianos, espanhóis e alemães, entre os quais os mercenários Landskchnechte, de fé luterana, estavam se preparando para atacar a Cidade Eterna. Seu comandante lhes tinha dado licença para saquear. Durante toda a noite o sino tocou a repique no Capitólio, a fim de convocar os romanos às armas, mas já era tarde demais para improvisar uma defesa eficaz.



Na madrugada de 6 de maio, favorecidos por uma névoa espessa, os Landsknechte empeenderam o assalto aos muros, entre Santo Onofre e Espírito Santo. Os guardas suíços se reuniram em torno do Obelisco do Vaticano, decididos a permanecer fiel ao seu juramento até a morte. Os últimos deles se imolaram próximo ao altar da Basílica de São Pedro. A sua resistência permitiu ao Papa pôr-se em fuga com alguns cardeais. Através do Passetto del Borgo, via de ligação entre o Vaticano e o Castel Sant’Angelo, Clemente VII chegou à fortaleza, único baluarte que restou contra o inimigo. Do alto das arquibancadas, o Papa assistiu à terrível chacina,que começou com o massacre daqueles que correram para as portas do castelo para encontrar abrigo, enquanto os pacientes do hospital do Espírito Santo em Saxia eram trucidados com golpes de lança e espada.


Invasão do Castelo de Sant’Angelo pelos mercenários Landsknechte em 1527
A licença ilimitada para roubar e matar durou oito dias, e a ocupação da cidade, nove meses. “O inferno não é nada comparado ao aspecto que Roma tem agora”, lê-se numa narrativa de 10 de maio de 1527, relatada por Ludwig von Pastor (História dos Papas, Desclée, Roma, 1942, vol. IV, 2, p. 261). Os religiosos foram as principais vítimas da fúria dos Landsknechte. Os palácios dos cardeais foram depredados, as igrejas profanadas, padres e monges mortos ou escravizados, as freiras estupradas e vendidas nos mercados. Viram-se paródias obscenas de cerimônias religiosas, cálices de Missa usados para embriagar-se entre as maldições, hóstias sagradas assadas em panelas e dadas como alimentação aos animais, túmulos de santos violados, cabeças dos apóstolos, como a de Santo André, utilizadas para jogar bola nas ruas. Um burro foi revestido de paramentos eclesiásticos e levado ao altar de uma igreja. O sacerdote que se recusou a dar-lhe a comunhão foi feito em pedaços. A cidade foi ultrajada em seus símbolos religiosos e nas suas memórias mais sagradas (ver também André Chastel, Il Sacco di Roma, Einaudi, Torino 1983; Umberto Roberto, Roma capta. Il Sacco della città dai Galli ai Lanzichenecchi, Laterza, Bari 2012).

Em 17 outubro de 1528, as tropas imperiais abandonaram uma cidade em ruínas. Um espanhol, testemunha ocular, nos dá um quadro terrificante da cidade um mês após o Saque: “Em Roma, capital da cristandade, não se toca nenhum sino, não se abrem as igrejas, não se reza uma Missa, não há domingo nem dia de festa. As ricas lojas dos mercadores servem de estábulo aos cavalos, os mais esplêndidos palácios estão devastados, muitas casas incendiadas, outras quebradas e levadas as portas e as janelas, as ruas transformadas em esterco. É horrível o cheiro fétido dos cadáveres: homens e animais têm a mesma sepultura; vi nas igrejas cadáveres roídos pelos cães. Não sei com que outra coisa comparar isso, exceto com a destruição de Jerusalém. Agora reconheço a justiça de Deus, que não falha ainda que venha tarde. Em Roma se cometiam o mais abertamente possível todos os pecados: sodomia, simonia, idolatria, hipocrisia, engano; para que não possamos acreditar que isso aconteceu por acaso, mas por julgamento divino” (L. von Pastor, História dos Papas, cit., p. 278). 

O Papa Clemente VII [quadro ao lado] encomendou a Michelangelo o Juízo Universal na Capela Sistina quase para imortalizar o drama que a Igreja de Roma sofreu naqueles anos. Todos compreenderam que se tratava de um castigo  do  Céu.  Não faltaram  avisos premonitórios, como  um raio que caiu no Vaticano e o  aparecimento de um eremita, Brandano da Petroio, venerado pelo povo como “o louco de Cristo”, que na manhã da Quinta-feira Santa de 1527, enquanto Clemente VII abençoava a multidão em São Pedro, gritou:  “Bastardo sodomita,  pelos teus pecados Roma será destruída. Confessa-te e converte-te, porque dentro de 14 dias a ira de Deus se abaterá sobre  ti e sobre a cidade”.

No ano anterior, no final de agosto, os exércitos cristãos tinham sido derrotados pelos otomanos no campo de Mohacs. O rei húngaro Luís II Jagiello morreu em batalha e o exército de Solimão  o Magnífico ocupou Buda. A onda islâmica parecia irrefreável na Europa.

No entanto, a hora do castigo foi, como sempre, a hora da misericórdia. Os clérigos perceberam quão estultamente tinham procurado as atrações dos prazeres e do poder. Depois do terrível Saque, a vida mudou profundamente. A Roma alegre do Renascimento se transformou na Roma austera e penitente da Contra-Reforma.

Entre os que sofreram no Saque de Roma estava Gian Matteo Giberti, bispo de Verona, mas que residia então em Roma. Aprisionado pelos sitiantes, jurou que jamais abandonaria a sua residência episcopal caso fosse libertado. Ele manteve a sua palavra, voltou a Verona e dedicou-se com todas as energias à reforma de sua diocese, até sua morte em 1543. São Carlos Borromeo, que será o modelo dos bispos da Reforma Católica, se inspirará no seu exemplo.

Em Roma também estavam Carlo Carafa e São Caetano de Thiene, que fundaram em 1524 Ordem dos Teatinos, um instituto religioso ridicularizado por sua posição doutrinária intransigente e pelo abandono à Divina Providência, a ponto de esperar pelas esmolas e nunca pedi-las. Os dois co-fundadores da Ordem foram presos e torturados pelos Landsknechte e escaparam milagrosamente da morte. Quando Carafa se tornou cardeal e presidente do primeiro tribunal da Santa Inquisição romana e universal, queria ter ao seu lado outro santo, o padre dominicano Michele Ghislieri. Os dois homens, Carafa e Ghislieri, com os nomes de Paulo IV e São Pio V [quadro ao lado], serão os dois Papas por excelência da Contra-Reforma católica do século XVI. O Concílio de Trento (1545-1563) e a vitória de Lepanto contra os turcos (1571) demonstraram que, mesmo nas horas mais sombrias da História, com a ajuda de Deus é possível o renascimento. Mas, na origem desse renascimento, esteve o castigo purificador do Saque de Roma.
Texto traduzido do original italiano por Hélio Dias Viana, ABIM, 3-12-2015

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