Maria João Avillez
Não só é preciso acabar com a (boa)
herança deixada pela coligação PSD/CDS como sobretudo corromper o prestígio
dessa memória. Um dois em um: desfazer o património, apagar a sua memória. Está
em curso
1. Não se largam, não se desprendem, não se soltam (cada um sabendo
que quando o fizer é de vez) mas fazem um bocadinho de aflição, tanto ruído.
Inaugurações, espectáculos, fóruns, deslocações, um carrossel de eventos e lá
estão eles, operando e agitando-se como talvez democracia alguma terá visto.
Não ocorrendo ao chefe do
Estado e ao chefe do governo que o sistema não carece da demonstração física de
tanta presença “afectuosa” ou que a política não pressupõe — e menos recomenda
— que ambos nos entrem assim, casa dentro. Assim, muitas vezes juntos mas
sempre num incessante afã de ocupação do espaço mediático através do qual
aliás, se espiam, se medem e desconfiam (um do outro), contando espingardas.
Lembram até o Capuchinho
Vermelho, “é para melhor te comer”, pois ambos sabem que “isto” não dá para os
dois, um devorará o outro. E vontade não lhes falta, mas enquanto não chega “o”
momento (e sim, eles são igualmente bons na avaliação dos “timings”)
instalaram-se na ideia de que acreditamos na bondade intrínseca desta
extenuante “cooperação”. Tão amável, tão harmónica, tão deslizante (e tão
improdutiva). O que é preciso é paz, entendimento, compreensão e, sobretudo,
nada de pessimismos. Não vai o país tão bem, leve e solto? Não está o povo tão
mais “descrispado”, não se enterrou de vez a “austeridade” que passou até a
chamar-se “medidas adicionais” (outro carinho face ao povo dantes martirizado
pela governação “austeritária” de Passos Coelho)?
Sim, é um mistério, mas eles
acreditam que nós acreditamos “nisto”. E neles, o que é pior, apesar de tão
inventivos, criativos, operativos (e tão cansativos).
Nunca achei que a política
casasse bem com o optimismo, mas com este “optimismo afectuoso” ainda menos
casa, conforme, se não estou enganada, qualquer ser normalmente constituído se
apressará a concordar.
2. O “isto”, um dia, pode não acabar bem. Peço desculpa pelo
pessimismo – lá está — tão deslocado num tempo feito de açúcar mas onde tudo
ocorre como nas “construções da areia”: castelos, torres e coisas fantásticas,
aparentemente seguras e sólidas, mas depois vem o mar que é a sério e desfaz os
castelos, que eram a brincar e por isso apenas me interessa hoje saber o
montante da factura que os meus filhos e netos irão pagar amanhã. Com os
algarismos que radiografam a saúde do país valsando entre o amarelo e o laranja
avermelhado, em que se há-de pensar se não neles (números e netos)?
Há pior que as contas, bem
sei, mas agora estava a só a ser prosaicamente caseira.
(Se não estivesse, evocaria
antes a simultaneidade dos sinais de perigo que se acendem na agreste paisagem
social e politica que vai da “Europa” deste extremo ocidente à “Europa” de
pátrias cansadas, encalhadas, zangadas. Capturadas pelos populismos, o
declínio, o desmembramento, o desnorte… E já semi-soltas da tapeçaria de cujo
desenho fazem parte e cujo destino lhes deveria ser comum. Um calafrio.)
Mas hoje trata-se “disto” e
daqui. De dar nota do meu pasmo face à manipulação que vem da governação que
nos coube em sorte e não em voto, e nos vende gato por lebre: nas enganadoras
conclusões económico- financeiras que tira das más decisões politicas que toma,
nas prioridades que elege, nas escolhas que faz, nos valores civilizacionais
que vai assassinando criteriosamente. E de uma certa forma de fraude que é para
a esquerda radical essa coisa que devia ser tão comum como a água nas torneiras
que é a liberdade. Mas ela não corre nem escorre como essa água, os canos da
esquerda estão muitas vezes convenientemente entupidos.
Sim, repito, nada disto pode
acabar bem, já se percebeu, mas não será a curto prazo. A grande redistribuição
em curso precisa de tempo e ainda estamos na época dela, como nas épocas das
cerejas ou das castanhas. Agora ainda estamos na saison dos “r”: redistribuir
muito e a eito, por um lado; e reverter tudo o que outros fizeram, por outro.
De bom ou de mau, tanto faz. Não só é preciso acabar com a (boa) herança
deixada pela coligação PSD/CDS como sobretudo corromper o prestigio dessa
memória. Um dois em um: desfazer o património, apagar a sua memória. Está em
curso. Convinha talvez que não se olhasse para essa delapidação com um olhar
tão plácido. Tão quieto.
3. Estava em Londres, foi há dias, pude observar a cena in loco e
ao vivo: Boris Johnson, físico farto e cabeleira desgrenhada, saindo de um café
numa rua londrina, tendo na mão um aparatoso gelado para o qual não tinha nem a
idade nem o apetite mas campanha eleitoral (a favor da saída da Grã-Bretanha da
UE) oblige. O ex-mayor de Londres parecia muito feliz, o olhar espevitado de
quem não duvida de si nem do desfecho desejado. Horas depois, David Cameron
numa outra rua, exibia passada muito mais lesta mas tinha o olhar tenso da
incerteza. Temor? Ameaça? E no entanto… eu quase que apostaria mas não me
perguntem porquê porque não é racional, que Cameron, embora em baixa – ele e o
seu partido – terá mais razões de felicidade que Boris Johnson. Felicidade relativa,
está bem de ver, dado o estado das coisas na Europa e no mundo. Mas se o “sim “
vencer, David Cameron salva a pele politica e as supostas convicções. Não evoco
sondagens, nem estudos de opinião, nem editoriais, de resto as melhores mentes
e assinaturas estão tanto no campo do “sim” quanto no campo do “não” no próximo
referendo quanto a manutenção britânica na UE. Evoco antes, como dizer? Uma
impressão, uma intuição, um ar do tempo que não me pareceu configurar o
devastador tremor de terra anunciado.
Tal percepção – admito que
errada mas foi a minha durante os dias de Londres – consolou-me aliás da pena
de não ter estado estado em Lisboa no domingo, para sair à rua não com um
gelado como Boris Johnson, mas para vitoriar o Benfica-campeão.
Mas como Deus raramente dorme
nestas coisas do futebol (veja-se o pouco que dormiu na saborosa vitória do
Braga sobre o Porto, ontem, na Taça), pude ver o último jogo do meu clube ao
lado de um dos meus filhos que não só é único que é do Benfica como vive em
Londres e… tinha em casa uma televisão acesa, sintonizada com essa tarde de
glória.
Ah (pequeno e inocente
desabafo), mas que difícil é explicar, transmitir, comunicar, declinar, o
arrepio de júbilo, o imaculado sentido de festa que pode provocar o futebol…
Paciência, mas estas vitórias já ninguém mas tira. E tomara aos falsos
siameses, Chefe de Estado e chefe do governo, serem capazes de me dar uma
migalha parecida que fosse com vitórias tão suadas, produtivas e bem
conquistadas como as do Benfica.
Tomara, sim.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 24-5-2016
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-