Gabriel Mithá Ribeiro
As esquerdas persistem em
autoidentificações como ‘socialistas’ ou ‘comunistas’ como se Estaline, Mao
Tsé-Tung ou Pol Pot não partilhassem essas identidades enquanto praticavam
genocídios.
A subjetividade da condição
humana dificilmente permite o recurso a adjetivações como ‘superioridade’ e
‘inferioridade’ moral. Ainda assim, o campo político está próximo de justificar
tratamento excecional dado o modo altivo com que muitos dos seus agentes
invadem a vida de todos nós, destacando-se a hegemonia das esquerdas em
atitudes e comportamentos de superioridade moral.
Todavia, com demasiada
frequência o correr do tempo evidencia que políticas inspiradas por tal
superioridade afastam sociedades, comunidades ou grupos da prosperidade. Uma
ordem moral superior que conduz a resultados inversos é ela mesma disfuncional.
Nascidas da necessidade de
regular os instintos primários da espécie, as sociedades reinventam-se a partir
de ordens morais que funcionam em torno de interditos. Nos primórdios, não
matar (o animal totémico que simbolizava o fundador ancestral) e não cometer o
incesto (que impunha a exogamia, condição de sobrevivência da espécie). Para
Freud, esses terão sido os interditos fundadores do sentido de pertença a uma
comunidade.
Entretanto, um longuíssimo
processo de transformação histórica foi renovando os significados dos
interditos e acrescentando outros, como não violentar a integridade física e
psicológica dos indivíduos, nas sociedades sofisticadas extensível à
propriedade individual.
Falta um detalhe fundamental.
Para Freud, não existiam ordens morais férteis, isto é, comunidades prósperas
sem a saliência de sentimentos coletivos de arrependimento, remorso e culpa
resultantes do parricídio do fundador. Considerando o valor simbólico desse
princípio, uma ordem moral será viável quando existirem sentimentos de culpa
pelo destino coletivo interiores a cada sociedade, aos próprios sujeitos.
O decurso posterior do século
XX acabaria por abalar as teses freudianas explicitadas em 1912-1913 em ‘Totem
e Tabu’. Isso porque a revolução russa de 1917, depois ampliada pelas
independências asiáticas e africanas após a segunda guerra mundial (1939-1945)
e por um conjunto de processos revolucionários, espoletou um furacão
revolucionário que atingiu os fundamentos históricos da ordem moral das
sociedades. Tornou-se legítimo que estas também pudessem reinventar o seu
destino orientadas por ideais de vitimização.
Por essa razão devemos ao
século XX a fragmentação entre um tipo de ordem moral de sentido
edipiano-freudiano e um tipo de ordem moral de sentido revolucionário. O
primeiro identificado com ideais conservadores em sociedades de secular
tradição cristã, o do complexo de culpa. O segundo mais universal e
identificado com ideais progressistas, o do princípio da vitimização. Neste
caso, os sentimentos de culpa pelo que prejudica sociedades, comunidades ou
grupos são remetidos para o que lhes é exógeno: ‘capitalismo’, ‘imperialismo’,
‘ricos’, ‘burgueses’, ‘fascistas’, ‘colonialismo’, ‘brancos’, ‘racismo’,
‘Ocidente’, ‘América’, ‘Bruxelas’, entre outros.
À medida que as poeiras da
história assentam ao fim de um século de revoluções, as teses freudianas
recuperam fôlego. Tem sido nas ordens morais e sociais de matriz não-edipiana
(do ideal de vitimização) que sobressaem com muitíssimo mais frequência
fenómenos disruptivos que, não raro, acabam remetidos das periferias para o
âmago da vida quotidiana. Nestes casos, o tempo torna bem mais comum os indivíduos
viverem expostos à criminalidade, corrupção, crises endémicas, falta de
prosperidade, abusos de poder, anomia social ou, no limite, falência do estado.
Trata-se de sistemas institucionais ou sociais com forte incapacidade em
exorcizar males cuja génese é, sempre e acima de tudo, endógena.
Uma parte da América do Sul e
da África do século XXI ameaçam transformar-se em casos extremos de
características partilhadas por diversas identidades coletivas.
Nesta perspetiva, as crises
atuais resultam de disfunções das ordens morais. Na origem está, insisto, um
século XX que legou à condição humana um fardo pesadíssimo, apenas parcialmente
suportável. Associa-se ao facto dos referentes fundadores da direita e da
esquerda, os seus campos radicais, terem sido responsáveis por muitos milhões
mortos. Para Freud, os pais fundadores originários eram necessariamente
violentos, razão do parricídio. O detalhe reside, por isso, no modo como, desde
o século passado, tem sido gerida a quebra massificada do interdito fundador
das ordens morais, não matar, pelas tendências ideológicas de direita e de
esquerda que, entretanto, se tornam hegemónicas na regulação da vida social um
pouco por todo o mundo.
O modelo comparativo dessa
fragmentação é identificável nas atitudes e comportamentos em relação ao seu
passado violento, por um lado, dominantes nas gerações alemãs pós-Hitler até à
atualidade, considerando que Hitler personificou o mal coletivo alemão (o
nazismo representa o extremo da violência radical da direita) e, por outro
lado, dominantes nas gerações russas pós-Lenine e sobretudo pós-Estaline até ao
presente, também considerando que personificaram a versão russa do mal coletivo
(o estalinismo representa o extremo fundador da violência radical de esquerda).
Num caso, foi possível gerar
uma ordem moral viável e, como consequência, uma sociedade próspera entre
aqueles que de modo persistente, e ao longo de décadas, têm trazido o seu mal
para a luz do dia, por muito que os perturbe, sem omitir os mais ínfimos ou
sórdidos detalhes. Noutro caso, foi gerada uma ordem moral estéril, incapaz de
gerar prosperidade, entre aqueles que nunca assumiram na plenitude a natureza
do seu mal e que, em geral, evitam, negam, suavizam, disfarçam, escondem,
atiram culpas próprias para terceiros.
Os povos são produto do modo
como pensam e regulam o mal endógeno. É o que distingue a Alemanha da Rússia de
hoje, mas poderia ser do mundo árabe.
O alemães serão provavelmente
o último dos povos onde a violência racial voltará a ser assassina, tal como os
portugueses serão o último dos povos onde algo semelhante à violência
inquisitorial voltará a matar. Ostensivos e permanentes exorcismos da violência
dos próprios contam-se entre as mais importantes pré-condições de prosperidade.
Não por mero acaso, será
difícil as direitas retomarem a autoidentificação de ‘nacional-socialistas’ ou
‘nazis’, sintoma de uma relação moral saudável com o passado entre os que
aprendem com os seus próprios erros. Em sentido contrário, as esquerdas
persistem em autoidentificações como ‘socialistas’ ou ‘comunistas’ como se
Estaline, Mao Tsé-Tung, Pol Pot e outros tantos ditadores não partilhassem
essas identidades enquanto praticavam genocídios ou escapavam a
responsabilidades diretas pela morte de milhões de seres humanos.
Em Portugal, a toxicidade da
instrumentalização moral da vitimização é a razão de ser do PCP ou do BE, mas
não menos de um PS tratado com imoral condescendência pelos próprios. Freud explica.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador,
29-5-2016
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