quarta-feira, 25 de maio de 2016

Trudeaus caídos

Maria João Marques
Um marido agressivo e uma mulher que depende profissionalmente dele. Que casal mais convencional e entediante. Em suma: um bom retrato da esquerda progressista. Ou dos caídos do Olimpo socialista.

Sabe quem é Justin Trudeau, o formoso, não sabe? Esse: o primeiro-ministro do Canadá. O que tem uma franja com os milímetros que cobre a testa tão detalhadamente calculados quantos os centímetros para a direita da cara de José Sócrates aquando do anúncio na televisão do resgate da troika. O que se tuitou numa imagem exibindo a sua força de braços ao suspender-se em prancha sobre uma mesa (chamam-lhe, li, a pose do pavão, que nunca ninguém disse que a realidade não tem um sentido de humor cáustico). E que oferece, com encenação de improviso que consegue convencer crianças de vinte meses e seis dias, lições de computação quântica (baralhando tudo, mas quem quer saber?)

Canada's Prime Minister Justin Trudeau and his wife Sophie share a moment during Remembrance Day ceremonies at the National War Memorial in Ottawa, Canada November 11, 2015. Photo: Chris Wattie/Reuters

Justin é – como faz parte da descrição obrigatória do líder de esquerda – avassaladoramente maravilhoso. Bonito (ou assim o dizem), jovem, progressista, um coração de manteiga para os refugiados sírios. Com pedigree familiar (que a esquerda que se diz igualitária nunca deixa de apreciar): é filho de um outro ex-primeiro-ministro canadiano. Ah, claro, e com uma mulher gira, Sophie, que foi à Casa Branca rivalizar no guarda-roupa com a fashionista Michelle Obama, também nova, antiga estrela de televisão, mãe de família moderna.

De acordo com a peculiar forma a preto e branco de ver o mundo do lado esquerdo da vida, o casal Trudeau não pode ser apelativo apenas politicamente. Por decreto é também bonito, sofisticado, culto, moderno, bem vestido, lido, uns pais formidáveis, arrebatadores, estonteantes, enfim, acrescentem aqui todos os adjetivos bons e cintilantes que há no mundo. Uma reedição dos santos de altar para a esquerda convencida que é iconoclasta.

Mas a beatitude progressista transporta, helás, inúmeros perigos. Supor-se do lado do bem, das pessoas bondosas que transpiram justiça social, imaginar-se como colocando os interesses dos mais desfavorecidos à frente dos seus (enquanto aproveita, no casos benignos, todos os gastos sumptuários que o orçamento pago pelos contribuintes lhe permite; nos malignos trata de engordar a conta bancária nas Ilhas Virgens Britânicas) – e, por cima disto, ser apaparicado pela nata da esquerda da comunicação social, é um veneno poderoso para os egos por regra suscetíveis à lisonja e insuflados. A hubris trata do inescapável tropeção na natureza humana.

Trudeau já sarapintou a sua reputação celestial. Vejamos. Há dias agraciou-nos com uma exibição deslocada do seu mau feitio – adorável, claro, que ele é um progressista de esquerda – ao puxar com violência um deputado no meio do parlamento. A agressividade foi tanta que deu uma forte cotovelada no peito de uma deputada, aparentemente sem intenção. A seguir fez aquele número em que os políticos se especializam: o de pedir desculpas sem efetivamente pedir. Em vez de se assumir que se fez mal, ponto, e se está arrependido, enrola-se um ‘SE ofendi/magoei/o-que-calhar alguém, peço desculpa’.

Como os Trudeau são um casal cúmplice que gosta de disparatar junto, Sophie veio reclamar publicamente por um maior staff para se poder dedicar a fazer aquilo que ocupa todo o tempo das pessoas boas de esquerda de coração puro e alma cristalina: ajudar os que a solicitam.

Quando li a notícia ainda pensei tratar-se de uma discussão relevante: como muitas mulheres conseguem conciliar família e profissão por terem a tremenda sorte (eu agradeço-a todos os dias) de contarem com uma boa estrutura familiar de apoio e empregada doméstica. E como as que não podem pagar pelo serviço doméstico, que outras mulheres lhes prestam, terminam com uma dificilmente ultrapassável barreira à progressão profissional – desde logo pelo cansaço acrescido da sobrecarga de tarefas e usufruírem de menos tempo de descanso. Por fugazes momentos pensei que Sophie Gregoire nos permitiria reconhecer, e conversar sobre isso, que a igualdade de oportunidades ainda só está disponível (e mesmo assim) para as mulheres das classes que podem pagar ajuda doméstica.

A seguir veio o que a esquerda traz sempre: a desilusão. Afinal Sophie, apesar de não ter sido eleita para nada e de o seu marido não a ter nomeado para qualquer cargo público, entende que os contribuintes lhe devem pagar um staff para poder dedicar-se a uma vida de benemérita sustentada com o dinheiro alheio.

Bom, podia aqui referir que a mulher do primeiro-ministro canadiano não tem (e muito bem), como ocorre pela maioria do mundo civilizado e até por civilizar, papel oficial a desempenhar. Pelo que este serviço de Gregoire seria só mais um exemplo da tendência da esquerda para se suportar em mecanismos políticos informais, com todos os abusos e cinzentos que estas ambiguidades trazem. Costa também tem o seu dileto amigo a facilitar negócios, primeiro pro bono (e padeci agora de um ataque de tosse perante tanto altruísmo) e depois por um valor insignificante que é ainda mais suspeito.

Mas vou ficar-me pela tão evidente traição ao progressismo dos Trudeau. Afinal uma mulher tão moderna e independente aceita ter uma carreira (no caso de benemérita profissional) à pendura do marido? Onde está a exibição orgulhosa de que valemos por nós em vez de pelos pais, irmãos, maridos, namorados?

Um marido agressivo e uma mulher que depende profissionalmente dele. Que casal mais convencional e entediante. Em suma: um bom retrato da esquerda progressista. Ou dos caídos do Olimpo socialista. 
Título e Texto: Maria João Marques, Observador, 25-5-2016

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