Maria João Marques
Um marido agressivo e uma mulher que
depende profissionalmente dele. Que casal mais convencional e entediante. Em
suma: um bom retrato da esquerda progressista. Ou dos caídos do Olimpo
socialista.
Sabe quem é Justin Trudeau, o
formoso, não sabe? Esse: o primeiro-ministro do Canadá. O que tem uma franja
com os milímetros que cobre a testa tão detalhadamente calculados quantos os
centímetros para a direita da cara de José Sócrates aquando do anúncio na
televisão do resgate da troika. O que se tuitou numa imagem exibindo a sua
força de braços ao suspender-se em prancha sobre uma mesa (chamam-lhe, li, a
pose do pavão, que nunca ninguém disse que a realidade não tem um sentido de
humor cáustico). E que oferece, com encenação de improviso que consegue
convencer crianças de vinte meses e seis dias, lições de computação quântica
(baralhando tudo, mas quem quer saber?)
Justin é – como faz parte da
descrição obrigatória do líder de esquerda – avassaladoramente maravilhoso.
Bonito (ou assim o dizem), jovem, progressista, um coração de manteiga para os
refugiados sírios. Com pedigree familiar (que a esquerda que se diz igualitária
nunca deixa de apreciar): é filho de um outro ex-primeiro-ministro canadiano.
Ah, claro, e com uma mulher gira, Sophie, que foi à Casa Branca rivalizar no
guarda-roupa com a fashionista Michelle Obama, também nova, antiga estrela de
televisão, mãe de família moderna.
De acordo com a peculiar forma
a preto e branco de ver o mundo do lado esquerdo da vida, o casal Trudeau não
pode ser apelativo apenas politicamente. Por decreto é também bonito,
sofisticado, culto, moderno, bem vestido, lido, uns pais formidáveis,
arrebatadores, estonteantes, enfim, acrescentem aqui todos os adjetivos bons e
cintilantes que há no mundo. Uma reedição dos santos de altar para a esquerda
convencida que é iconoclasta.
Mas a beatitude progressista
transporta, helás, inúmeros perigos. Supor-se do lado do bem, das pessoas
bondosas que transpiram justiça social, imaginar-se como colocando os
interesses dos mais desfavorecidos à frente dos seus (enquanto aproveita, no
casos benignos, todos os gastos sumptuários que o orçamento pago pelos
contribuintes lhe permite; nos malignos trata de engordar a conta bancária nas
Ilhas Virgens Britânicas) – e, por cima disto, ser apaparicado pela nata da
esquerda da comunicação social, é um veneno poderoso para os egos por regra
suscetíveis à lisonja e insuflados. A hubris trata do inescapável tropeção na
natureza humana.
Trudeau já sarapintou a sua
reputação celestial. Vejamos. Há dias agraciou-nos com uma exibição deslocada
do seu mau feitio – adorável, claro, que ele é um progressista de esquerda – ao puxar com violência um deputado no meio do parlamento. A agressividade foi
tanta que deu uma forte cotovelada no peito de uma deputada, aparentemente sem
intenção. A seguir fez aquele número em que os políticos se especializam: o de
pedir desculpas sem efetivamente pedir. Em vez de se assumir que se fez mal,
ponto, e se está arrependido, enrola-se um ‘SE ofendi/magoei/o-que-calhar
alguém, peço desculpa’.
Como os Trudeau são um casal
cúmplice que gosta de disparatar junto, Sophie veio reclamar publicamente por um maior staff para se poder
dedicar a fazer aquilo que ocupa todo o tempo das pessoas boas de esquerda de
coração puro e alma cristalina: ajudar os que a solicitam.
Quando li a notícia ainda
pensei tratar-se de uma discussão relevante: como muitas mulheres conseguem
conciliar família e profissão por terem a tremenda sorte (eu agradeço-a todos
os dias) de contarem com uma boa estrutura familiar de apoio e empregada
doméstica. E como as que não podem pagar pelo serviço doméstico, que outras
mulheres lhes prestam, terminam com uma dificilmente ultrapassável barreira à
progressão profissional – desde logo pelo cansaço acrescido da sobrecarga de
tarefas e usufruírem de menos tempo de descanso. Por fugazes momentos pensei
que Sophie Gregoire nos permitiria reconhecer, e conversar sobre isso, que a
igualdade de oportunidades ainda só está disponível (e mesmo assim) para as
mulheres das classes que podem pagar ajuda doméstica.
A seguir veio o que a esquerda
traz sempre: a desilusão. Afinal Sophie, apesar de não ter sido eleita para
nada e de o seu marido não a ter nomeado para qualquer cargo público, entende
que os contribuintes lhe devem pagar um staff para poder dedicar-se a uma vida
de benemérita sustentada com o dinheiro alheio.
Bom, podia aqui referir que a
mulher do primeiro-ministro canadiano não tem (e muito bem), como ocorre pela
maioria do mundo civilizado e até por civilizar, papel oficial a desempenhar.
Pelo que este serviço de Gregoire seria só mais um exemplo da tendência da
esquerda para se suportar em mecanismos políticos informais, com todos os
abusos e cinzentos que estas ambiguidades trazem. Costa também tem o seu dileto
amigo a facilitar negócios, primeiro pro bono (e padeci agora de um ataque de
tosse perante tanto altruísmo) e depois por um valor insignificante que é ainda
mais suspeito.
Mas vou ficar-me pela tão
evidente traição ao progressismo dos Trudeau. Afinal uma mulher tão moderna e
independente aceita ter uma carreira (no caso de benemérita profissional) à
pendura do marido? Onde está a exibição orgulhosa de que valemos por nós em vez
de pelos pais, irmãos, maridos, namorados?
Um marido agressivo e uma
mulher que depende profissionalmente dele. Que casal mais convencional e
entediante. Em suma: um bom retrato da esquerda progressista. Ou dos caídos do
Olimpo socialista.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
25-5-2016
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