Francisco Assis
Confesso a minha surpresa. Já
não esperava, nos dias da minha vida, ouvir um destacado militante do PCP
apelidar Josef Stalin de “sujeito criminoso”. Mário Nogueira ludibriou a minha descrença. Fê-lo em resposta a
um cartaz supostamente iconoclástico, da autoria moral da JSD, no qual surge
retratado com as vestes do antigo líder soviético. Há no cartaz, e na reacção
ao mesmo, aspectos assaz curiosos que merecem ser analisados.
Comecemos pelo cartaz. Uma
organização política de juventude deve recorrer a este tipo de caricatura como
forma de exprimir o seu próprio ponto de vista e denegrir uma perspectiva
alheia? Não estando em causa o direito a fazê-lo, dado tratar-se do exercício
da liberdade de expressão plenamente consagrada no nosso ordenamento jurídico e
amplamente reconhecida no domínio das práticas sociais vigentes, a questão
coloca-se num outro plano. Uma organização política tem ou não o dever de
evitar o recurso a formas de linguagem de carácter notoriamente ofensivo e
susceptíveis de concorrer para a radicalização desnecessária do confronto
político? A meu ver, a resposta a esta pergunta é clara: tem.
A JSD excedeu-se notoriamente
ao recorrer à figura de Stalin para contestar as posições que têm vindo a ser
assumidas pelo líder da FENPROF no debate em curso sobre o financiamento
público de alguns colégios privados. Arguirão os autores morais do cartaz que
se trata de uma caricatura, com o natural excesso que esta modalidade estética
implica. Será verdade, mas mesmo esse argumento carece de verdadeiro fundamento
no plano político. Ao que se sabe, a JSD não é um jornal satírico, uma trupe de
humoristas ou um grupo de variedades. Se assim fosse não se lhe poderia
censurar o gosto pela incontinência verbal manifestada no recurso a imagens
próximas da blasfémia. Porém, enquanto organização política que é, deveria
sentir-se obrigada a um uso mais ponderado da sua criatividade panfletária. A
democracia liberal convive mal com excessos retóricos que empobrecem o
confronto de ideias e acentuam dramaticamente as polarizações políticas. Quando
se perde a noção de um desejável comedimento está-se a favorecer, ainda que
inconscientemente, a afirmação de posições extremistas.
É claro que se poderá sempre
afirmar que Mário Nogueira está a provar do seu próprio veneno. Apesar da
bonomia que aparenta, e que de facto torna inverosímil qualquer tentativa de
identificação da sua personalidade com o tirano soviético, o líder da FENPROF
não é propriamente um menino de coro em estado de virgindade retórica. Pelo
contrário, sempre se caracterizou pela adopção de uma linguagem excessiva e
colocada ao serviço de um fanatismo corporativo-ideológico que só tem paralelo
no comportamento dos estivadores do porto de Lisboa. Todos nos lembramos da
forma como se foi referindo, ao longo do tempo, aos vários titulares da pasta
da Educação, bem como das campanhas verbalmente agressivas que promoveu por
todo o país. Que o diga Maria de Lurdes Rodrigues. Nisso, aliás, não se
diferenciou do comportamento geral da extrema-esquerda que nos últimos anos
rebaixou deliberadamente o nível da discussão política em Portugal. Basta ver
como os deputados do PCP e do BE actuam no Parlamento para perceber a que ponto
a degradação da linguagem constituiu uma opção política consciente.
Escasseia por isso a Mário
Nogueira legitimidade moral para assumir o papel de vítima em que se quer
instalar. A grosseria alarve com que ele e os seus companheiros de percurso
tantas vezes trataram quem deles discordava permanece demasiado viva na memória
colectiva para que agora se pudesse arvorar em alvo inocente da perfídia de
alguns jovens conservadores portugueses.
O que há de verdadeiramente
novo neste episódio é a forma como Mário Nogueira ousa referir-se ao “camarada”
Stalin. Refere-se a ele como um “sujeito”? ainda por cima ”criminoso”. Ora,
isto é que não estava previsto no guião e extravasará em muito as expectativas
dos próprios rapazes da JSD. Nogueira rompeu com a ortodoxia comunista, ofendeu
décadas de idolatria stalinista, pôs em causa a própria identidade do PCP. Um
dia destes ainda o veremos a explicar a Rita Rato quem foi Soljenitsin e quão
real era a existência dos gulags. Das duas, uma: ou no PCP a tradição já
não é o que era ou Mário Nogueira arrisca-se a ter problemas. Permito-me até
dar-lhe um conselho: não se preocupe tanto em mover um processo aos “garotos
imberbes” da JSD e preocupe-se mais em preparar a defesa de um eventual
processo disciplinar que o seu partido lhe venha a instaurar. A JSD cometeu um
erro; já Mário Nogueira, esse sim, teve um gesto verdadeiramente iconoclástico.
Involuntariamente, ele pode sair desta história como um verdadeiro herói. O
primeiro dirigente comunista que não precisou de se tornar dissidente para ver
em Stalin aquilo que este foi: um verdadeiro sujeito criminoso.
Título (Parêntese do Editor) e Texto: Francisco Assis, Deputado do PS, Público,
26-5-2016
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