Paulo Tunhas
Os micrologistas tendem à especialização em
áreas particulares: alimentação, linguagem, e por aí adiante. Vigiam e incitam
à punição. Os seus porta-vozes mais conhecidos são os “jornalistas de
causas"
Confesso que fiquei surpreendido.
Estava numa esplanada a ler um livro e a fumar quando a jovem com ar de drogada
me pediu um cigarro. Não era nenhum dos meus pedintes privados (tenho três ou
quatro naquela rua), mas, é claro, dei-lhe um. Pegou nele e, olhando para o
maço com a menina que cospe um líquido vermelho para um lenço, disse-me,
fitando-me reprovadoramente e com a voz a roçar o ríspido: “Isto faz muito
mal!”.
Como qualquer fumador, já me
aconteceu, normalmente no ato da compra do produto em questão, ter de aguentar
com uma peroração ou outra vinda de um cavalheiro ou de uma senhora que
apreciam exibir a sua virtude. Já nem me irrita muito, até porque, sem me
querer gabar, o tempo e a experiência me permitiram desenvolver algumas
respostas eficazes para essas intromissões na vida privada. Mas uma coisa assim
nunca me tinha acontecido e, compreensivelmente, consegui apenas rir-me.
Mas um espírito avisado não se
pode contentar com a surpresa. É preciso ir mais além e tentar compreender. Por
que raio a jovem drogada julgou conveniente pôr na ordem o pacato benemérito
que lhe tinha mostrado uma impecável solidariedade humana? Afastei
imediatamente quaisquer considerações morais sobre a propensão à ingratidão que
a espécie humana por vezes manifesta. Nunca se vai muito longe quando se vai
por aí. Procurei a sutileza psicológica possível. E veio-me à cabeça o medo,
essa paixão de que todos os filósofos falaram e que está sempre presente nas
nossas vidas. De acordo com a doutrina inventada para consumo próprio na
altura, a minha objurgatória amiga atravessaria um episódio psíquico no qual
essa paixão seria dominante. E haverá melhor maneira de a exorcizar, de a
expulsar para fora, do que através da condenação do outro?
A sofisticação especulativa,
no entanto, está muito longe de garantir o acesso à verdade, e, pouco a pouco,
dei comigo a refletir em matérias mais gerais que, deixando escapar por inteiro
a singularidade do caso a explicar, lhe diziam no entanto respeito. Estou-me a
referir à facilidade muito notória em ter opiniões sobre tudo e em não hesitar
por um só segundo em as aplicar ao comportamento dos outros para os censurar. Demos
um nome a essa disposição humana: incontinência
judicativa.
Se há algo que domina a nossa
vida social presente é mesmo a incontinência judicativa. A lista de associações
de várias pintas que se dedicam ao exercício de juízos sobre o comportamento
dos outros não tem fim. O número de censuras e reprovações com que diariamente
nos vemos confrontados em jornais e televisões já não se conta. A incontinência
judicativa passou a ser o pão nosso de cada dia e os incontinentes judicativos
passaram a ser os tutores permanentes, públicos e autorizados, das nossas
vidas.
Um resultado muito palpável da
ascensão da incontinência judicativa na nossa sociedade é a progressiva
eliminação da categoria do indiferente. O espaço do indiferente reduziu-se
drasticamente. Tudo, ou quase tudo, passou a ser objeto possível de juízo. O tempo
está para os micrologistas, detentores autodesignados da ciência do bem e do
mal aplicada aos mais ínfimos detalhes. Os micrologistas tendem à
especialização em domínios particulares: alimentação, linguagem, e por aí
adiante. Vigiam e incitam à punição. Os seus porta-vozes mais conhecidos são os
“jornalistas de causas”, que elevam a incontinência judicativa e a micrologia à
altura de uma arte que se confunde com um modo de vida.
Isto acontece, é claro, porque
um bom número de tendências da sociedade contemporânea facilita a coisa. A
começar pela regulamentação cada vez maior do comportamento individual pelo
Estado. E não é assim de estranhar que certas forças políticas tenham aí
descoberto um nicho ecológico para se instalarem, como é patentemente o caso do
Bloco de Esquerda, que começou a prosperar sob a direção da figura do
incontinente judicativo máximo, Francisco Louçã. Muito mais do que uma novidade
política efetiva, o Bloco soube aproveitar uma tendência geral da sociedade, à
qual deu voz e representação. A prova do seu sucesso e da sua filiação no ar do
tempo está no modo como a sua prática da micrologia, da incontinência
judicativa fundada na convicção da não indiferença de nada, se alargou sem
dificuldade alguma a outras paragens políticas.
E a liberdade, nisto tudo?
Perde, como é bom de ver. Não se nota nunca suficientemente como a liberdade
assenta, a par da convicção firme em alguns poucos princípios, no exercício de
uma indiferença de base relativamente ao que não é essencial para a vida
política. Os clássicos do liberalismo fartaram-se de o dizer e está aí a razão
bastante para a sua atualidade. O liberalismo é a doutrina que por excelência
se opõe à micrologia e à incontinência judicativa. E que, permitindo-nos
centrar nas questões políticas verdadeiramente essenciais, nos deixa pensar com
alguma pertinência o que é importante na nossa vida comum.
Resta a jovem do cigarro e da
censura. Reflexão feita, se a coisa voltar a acontecer dou-lhe um cigarro à
mesma. Nestes tempos pouco liberais o último pecado que quero cometer é eu
próprio cair na tentação de julgar uma insignificante incoerência um mal
merecedor de represálias. Há mesmo casos em que a indiferença protege as
relações humanas. E uma coerência excessiva faz-lhes mal.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
13-4-2017
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