Maria João Avillez
Quem não ganha uma erupção cutânea nas
estranhas circunstâncias políticas de hoje? Este meu último surto foi provocado
pela oficialização do “não é bem assim”.
1. Ando
impaciente. Pensava que o ter já visto muito, que a prática aturada – e apurada
– que tenho da natureza humana, ou que a idade, me podiam ter precavido contra
estes excessos de impaciência, mas não. Cai-me mal que façam de mim parva a
este ponto, ou a qualquer outro ponto. E nem a quadra Pascal e o que ela me
recomenda amenizaram esta espécie de irritação, como uma erupção cutânea. Podem
estranhar a palavra, não acho outra melhor: quem não fica assim nas
circunstâncias que são hoje as nossas estranhas circunstâncias políticas?
Este último surto – não é a
primeira vez que sou atacada – foi provocado pela oficialização do “não é bem
assim”. Passou a ser totalmente natural uma coisa ser propagandeada como sendo
”assim “e a realidade mostrar-nos que afinal “não é bem assim”. Uma novidade.
Como se tivéssemos entrado numa nova era, um novo regime de vida, uma
decididamente nova modalidade de fazer política.
Senão, repare-se nisto:
a) o Presidente da nossa
cansada República vai em pessoa inaugurar o novo nome de um aeroporto a uma
ilha. Ato já de si singular e a provocar estranheza, mas eis que a bizarria se
torna aguda: o primeiro-ministro também vai. Vão os dois? Voam de Lisboa ao
Funchal, com o mesmo (leve) propósito? Sim, voam. Não havendo explicação
racional nem plausibilidade política, resta uma intuição que embora original
deve ser verdadeira: ambos são um passatempo (barato) um para o outro. Nenhum
deles aliás esconde a felicidade causada pela cumplicidade que os atacou, como
a mim a erupção cutânea. O nome do aeroporto glorificando um futebolista
(genial é certo…) casa aliás às mil maravilhas com o ar deste tempo de
facebooks e instagrams, mas, that’s the point, afinal o nome “não é
bem assim”, porque pode não “ser bem este”.
Pode ser, não se sabe, talvez
seja. Já lá está uma placa e um irrisório e letal busto assinado por um “autodidata”,
mas o nome do aeroporto ainda não está oficializado. Ou seja: não foi bem assim
como “eles” disseram, mas que importância tem? A mídia amplificou a tournée
regional do extraordinário trio das duas altas individualidades nacionais e do
futebolista, o país parou, o país gostou (mesmo que não tenha sido “bem
assim”).
b) O caso da ida – que não foi
ida – do ministro das Finanças para o Eurogrupo também “não foi bem assim”. Até
ao dia em que escrevo (segunda-feira) nenhum alto responsável europeu
“certificou” a ideia, não consta que tenha havido “conversações”, não se
conhecem iniciativas que comprovem o desejo de ver Centeno liderar aquela
função. Admito evidentemente que num elevador ou diante de uma bica no
intervalo de uma sessão, alguém tenho dito ao ministro que “ele é que, etc.”,
mas que garantia de credibilidade haveria nisso? Além de que seria no mínimo
estranho – mas posso estar enganada – que o resto do Eurogrupo anuísse em ter
como novo líder alguém vindo do país que com mais empenho, maior veemência e
notável ruído pediu a demissão de Dijsselbloem, frente ao quase silêncio do
resto do “Sul”. É certo que Dijsselbloem pode partir antes do final do mandato
se deixar as Finanças – caso provável após a derrota socialista nas eleições
holandesas –, já que tradicionalmente o Eurogrupo é liderado por um ministro
das Finanças. Será, porém, esse fracasso partidário e não o primarismo infeliz
das suas recentes investidas contra o sul que lhe darão – ou não – uma guia de
marcha. (Sul por Sul, o que me dizem nas portas onde bati para o meu trabalho
de casa é que a escolha pode recair no espanhol Guindos.) O que interessa nesta
história é o que interessa ao poder: ganho para a geringonça. Ficcionou-se
abusiva e abusadoramente a projeção internacional de Mário Centeno, o governo
fez oportunisticamente de conta que em Bruxelas somos gente, o país engoliu a
história sem se interrogar porque deixou de se interrogar ou se importar. Que
interessa aos portugueses que nada disto tenha sido “assim”, desde que o
ministro lhes “devolva” ou “distribua” ou “dê” mais dinheiro (que não é nosso),
prometendo-lhes além disso que não os maça?
c) A história de que a venda
do Novo Banco não vai desaguar nos nossos pobres bolsos também “não é bem
assim”. Qualquer político sério o sabe, qualquer bom economista o corrobora. A
diferença, justamente pouco séria, é que o Governo também sabe, mas não o diz.
Diz “de momento”, ardilosa expressão. Sim, talvez os custos da aventura não
aterrem já em cima do nosso fim de mês, mas lá mais para diante ou lá mais para
o ano, não se sabe. Ou melhor, sabe-se. Mas o que interessa é fingir que não,
andar para frente, cada dia é um dia, e a geringonça vive disso mesmo, cada dia
é mais um dia “seu”.
d) Paulo Macedo foi durante
quatro pesados anos o (assim chamado) “coveiro” do Serviço Nacional de Saúde.
Sucedeu-lhe um (suposto) salvador do mesmo Serviço Nacional de Saúde. Anunciado
como preparado, experiente, competente, dedicado. Afinal parece que “não é bem
assim.” Salvo a dedicação, que ignoro se existe, nem a preparação, nem a
competência, nem experiência parecem condizer com o atual estado de saúde desta
área governativa. As dívidas dos hospitais roçam o astronómico; há muito que
não se verificavam listas de espera deste tamanho, as urgências (um cavalo de
batalha do atual ministro que prometeu agilizá-las ao máximo) estão atulhadas.
As ordens e instruções para trocar o investimento por salários e benesses não
podia acabar bem.
Ignoro se a ordem veio de cima
ou da cabeça do ministro – o que não ignoro é que foi isto que aconteceu. Como
a comunicação social misteriosamente se desinteressou das reportagens
incandescentes que fazia, desistindo dos alarmes que acendia e das campainhas
que tocava na Saúde, parece que está tudo bem. Está como quase tudo o resto,
está “não é bem assim”. (Só não está pior graças ao sentido de responsabilidade
e à capacidade de serviço da muita gente séria e boa que lá trabalha.)
No tempo do (falso) coveiro do
SNS e apesar de austeridades, troikas e Gaspares, abriram-se os hospitais
Beatriz Ângelo (Loures) os de Amarante, Guarda, Lamego e o novo de Vila Franca
de Xira, (para citar os que me lembro agora). E houve- por exemplo -.
investimento de vulto em instituições de saúde tão vitais como o IPO de Lisboa
e do Porto. Não me parecem maus exemplos de boa gestão.
2. Os casos a que
aludi acima – propositadamente distintos entre si – mostram como o “é assim”
que nos impingem tem sido recorrentemente falso, substituído com publicidade e
sem vergonha pelo “não é bem assim”.
Não, não é uma questão
linguística, nem de interpretação, nem sequer um problema que se resuma à
conjugação do verbo mentir. É uma nova modalidade de prática política e de ação
governamental. Não a conhecíamos, mas vai-se sempre a tempo.
O próprio tempo é que pode não
dar tempo ao tempo.
3. De modo que é
isto. E um dos mais felizes com “isto” é o Presidente (o muito amado) pois só
lhe falta andar pelos telhados do país para anunciar ainda mais alto tantas
boas novas. Peço desculpa, mas hei de lembrar esta estonteante felicidade
presidencial sempre que vier a propósito. Qualquer dia também ela deixará
obviamente de ser “bem assim”. Mas até lá e para que daqui a um, dois, cinco,
dez anos, a felicidade não fique sepultada no tão português esquecimento das
coisas, não subestimarei o extraordinário entendimento que o atual presidente
tem das suas funções e de como “acha” que deve exercê-las.
4. A matança dos
cristãos coptas no Egipto no último domingo (chamado o de Ramos na liturgia
católica) foi a porta de entrada para a Paixão de Cristo que se revive e
celebra por estes dias. Dolorosa entrada a selar a Semana Maior. Mas a grande,
ou melhor, a única grande questão que esse gesto brutal e demencial suscita é
perguntarmo-nos que vamos nós fazer com ele. Que significado lhe dar, que peso
lhe reconhecer, que fronteira perceber que ele passou, que limite lhe conceder?
Muitos semi-ignoraram o
assassinato, uma coisa lá longe, praticada sobre um povo “diferente”; outros,
espantosamente, parece que já se habituaram a matanças assim, uma trivialidade,
como quem vai pôr gasolina ou comprar tabaco; para outros ainda, a esmagadora
maioria, o tal povo longínquo, só conta e é notícia se estiver nas praças das
primaveras árabes em vez de numa igreja minoritária a rezar mesmo que seja
assassinado a seguir.
Mas – insisto – só há uma
pergunta: que fazer com o que sucedeu a partir do momento em que não podemos
disfarçar a responsabilidade de pertencer à civilização ocidental e de sermos
filhos da matriz cristã onde foi forjado o chão de onde somos?
Que compromisso nos irá
merecer a memória do sangue dos que, no último domingo, não puderam chegar ao
fim das suas orações numa igreja do Egipto?
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 13-4-2017
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