Paulo Tunhas
Percebo muito bem a minha saudade de alguém
como Passos Coelho. Que me lembre, manteve uma razoável coerência no seu
discurso. Eu, se fosse do PSD, deixava-o onde está. É melhor do que os outros.
Lendo e ouvindo o que se diz
por aí, parece que não há lugar para dúvidas: a oposição de Passos Coelho a
António Costa é frágil e sem consequência. Pelo menos é o que nos dizem vozes
do PSD, vozes do PS e comentadores de vária espécie. Talvez seja verdade. Sofro
de uma terrível falta de jeito para avaliar a eficácia das tácticas partidárias
e é tarde demais para adquirir alguma sofisticação no capítulo. Mas de três
coisas básicas tenho uma certeza absoluta. Primeiro, que foi o PS, versão
Sócrates, que conduziu, alegremente e à vista de todos, o país à beira da
bancarrota. Segundo, que foi Pedro Passos Coelho, depois de ganhar as eleições,
que se dispôs, com uma coragem e um estoicismo difíceis de imaginar, a pôr
alguma ordem na coisa pública. Terceiro, que, apesar da flagrante
impopularidade de muito do que fez e de vários erros de percurso, conseguiu de
novo que o PSD ganhasse as eleições. Que ao PS, versão Costa, tenha sido
permitido, com as suas alianças, formar o atual Governo não muda um átomo no
que respeita a este último facto. Isto tudo junto despertou em mim admiração
pelo homem e desconfiança por relação aos herdeiros de Sócrates. Não creio que
os sentimentos sejam incompreensíveis.
Mas, a acreditar em algumas
sondagens, o mundo não foi feito para este género de gratidões, uma verdade que
certamente não é de agora. E António Costa goza de uma popularidade idêntica à
de Sócrates, quando, nas eleições contra Manuela Ferreira Leite, conseguiu
formar o seu segundo Governo, numa altura em que as catástrofes que se
avizinhavam já eram discerníveis a olho nu. E a propaganda, apesar de várias
diferenças, é no essencial a mesma. O país é o país das maravilhas. As dúvidas
de Pedro Passos Coelho, tal como as dúvidas da Manuela Ferreira Leite da
altura, só podem resultar das piores razões, inclusive das piores razões de
carácter. Toda a gente, através da propaganda, ficou a par do racismo e da
xenofobia de Passos Coelho e do seu apetite pela “maledicência” (é verdade:
Costa ressuscitou a expressão que não saía nunca da boca de Sócrates). Outra
característica aparentemente sua é o “cinismo”: o cinismo de alguém, como
explica esse pilar do Governo que dá pelo nome de Catarina Martins, que “espera
que tudo corra mal ao país”. Um típico traidor, para levar o raciocínio às suas
mais imediatas consequências. E um traidor a um país que paulatinamente se vem
tornando, graças aos elevados sentimentos da gente do poder e ao seu superior
discernimento, num verdadeiro país das maravilhas.
É o que a propaganda não se
cansa de repetir. Pela voz, por exemplo, da versão lusitana da recentemente
célebre Ri-Chun-hee (a apresentadora televisiva da Coreia do Norte), o nosso
conhecido João Galamba, que anuncia cada novo feito de Costa com um aprumo e
uma efusividade que nada ficam a dever ao original norte-coreano e que fulmina
os adversários com um incontido desprezo que sublinha, como se tal fosse
preciso, a natural grandiosidade da sua própria pessoa. Não é certamente o
único a praticar o exercício. Há por aí muitos outros generais do sorridente
António Costa que dão saltinhos e palminhas a cada novo feito seu. E há a fatal
filinha daqueles que se encostam ao poder, qualquer que ele seja, para tratarem
da sua vidinha.
O chefe, entretanto, fala também
de amor. Em Matosinhos, mencionou a “relação intensa” entre o PS e aquela
cidade. “Intensa” apenas? Não: “uma relação de amor”, um amor vivido entre
“alegrias” e “arrufos”, como convém às grandes paixões. Porque há mesmo uma
indesmentível “paixão”. “E a paixão, naturalmente, dá calor a esta relação e
torna-a particularmente emotiva”. Esta utilização pelo chefe de uma tal
retórica, com o concomitante desvio relativamente a qualquer discurso racional,
não é acidental. Pede-se emoção, amor, paixão. Em suma: reconhecimento do
carisma próprio, como diria o outro. É um pouco o elogio do “grupo em fusão” de
que falava Sartre, em que os indivíduos se indistinguem numa ação coletiva. A
paixão, com um ou outro momento de arrufo, junta-os num corpo único dotado de
uma vontade una.
Felizmente, há também lugar
para a extrema sobriedade. Exemplo maior dessa sobriedade é a entrevista
concedida no outro dia pelo ministro da Defesa, Azeredo Lopes, ao Diário de
Notícias. Sobriedade? A palavra é fraca. Diria antes cepticismo, e dos mais
radicais. Não há aí lugar para a paixão, para o amor, ou sequer para as
emoções. Apenas uma distância intelectual e altaneira face ao baixo mundo dos
factos materiais, cuja realidade efetiva, de resto, é posta em questão. É
talvez isso, de resto, que o faz criticar a “lógica sacrificial” própria ao
clamor mediático que procura culpas. Não um qualquer medo de ser vítima de uma
unanimidade sacrificial em que fosse arbitrariamente escolhido para expiar os
pecados da comunidade e restabelecer a boa ordem social, como parece que
acontecia em certas tribos primitivas. Não: a objecção é puramente lógica.
Respondendo a perguntas
relativas ao patético episódio de Tancos, o ministro da Defesa anuncia que
pediu a quem de direito “um varrimento mais inspetivo e menos estático” sobre o
estado das instalações militares. É obviamente de aprovar. “Varrimentos
estáticos” não suscitam grande confiança. Não é que o material que se diz
roubado represente grande perigo: era obsoleto. Ou melhor: não representa grande
perigo para a população em geral. Porque o ministro reconhece que para uma
certa categoria de entre a população ele é efetivamente perigoso.
Qual categoria? A dos
hipotéticos ladrões. Diz-nos o ministro: “Sem querer estar a fazer humor com
isso, um civil que queira utilizar um sistema LAW [um sistema de mísseis anticarro,
expressão que o ministro não aprecia, por ser “demasiado espetacular”]
obsoleto, arrisca-se a que lhe exploda nas mãos. Arrisca-se, no mínimo, a que
esse sistema ou não dispare ou não seja capaz de cumprir com a eficiência que
teria se não estivesse, desculpem-me a expressão, fora de prazo”. Eis uma
análise puramente técnica que manifesta, entre outras coisas, uma louvável
preocupação com o bem-estar dos hipotéticos (repito: hipotéticos) ladrões e
até, é lícito imaginar, com a eficácia das suas possíveis ações futuras. Só não
se percebe que o tal equipamento estivesse guardado no paiol de Tancos para ser
utilizado num curso de formação de sapadores. Não haveria idênticos riscos nesse
caso?
Reparar-se-á que escreve
“material que se diz roubado” e “hipotéticos ladrões” duas vezes. Não foi por
acaso. Foi porque o ministro vê toda a situação com um radical cepticismo. De
facto, declara, “não sei se esteve lá [no paiol de Tancos] alguém”. Tudo o que
declara conhecer são factos visíveis ou estritamente discursivos. Há “um furo
na cerca” e “foi declarado o desaparecimento de material militar”: “o que sei é
que material que se encontrava à guarda do exército desapareceu”. Um céptico é
prudente e recusa-se a dar o salto do visível para o invisível. Não faz
conjecturas: “não estou nem deixo de estar convencido, só sei que desapareceu”.
Tenha estado lá alguém ou não, desapareceu. Pode-se ter limitado a desaparecer
sem ação humana alguma. Quem somos nós para saber? Apenas nos é concedido o
direito a supor uma verossimilhança ou outra: “Tenho de presumir, por bom senso
e porque não sou dado a teorias da conspiração, que desapareceu algures antes
de 28 de junho quando eu tomei conhecimento”. Suponho que o ministro da Defesa
alarga esse sentimento geral à existência do mundo prévia ao seu nascimento:
tem de presumir, sem que tal presunção represente uma convicção sólida, que o
nosso bom planeta já cá estava antes da memorável data.
Uma tal dose de cepticismo
conforta a alma, até porque contrasta com a avassaladora paixão exibida por
António Costa ou com o entusiasmo inequivocamente manifestado por João Galamba.
O meu único problema é saber como fazer concordar uma atitude intelectual com a
outra. A reação é de perplexidade face à conjunção destes dois extremos, a
exaltação heróica e a distância céptica. Por causa desta perplexidade, percebo
até muito bem a minha saudade de alguém como Passos Coelho. Que me lembre,
nunca caiu num extremo ou noutro e manteve uma razoável coerência no seu
discurso e no seu entendimento da realidade. Não por causa do PSD. O PSD
produziu ao longo da sua história criaturas tão inenarráveis como qualquer
outro partido, embora tenda a pensar que, no conjunto, a sua ação tenha, em
média, sido menos nefasta do que a do PS. Não: por causa das características
próprias de Passos Coelho. Eu, se fosse do PSD, deixava-o onde está. É melhor
do que os outros.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
14-9-2017
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