terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Contrário à regra

Aparecido Raimundo de Souza

DONA DOLORES MARCOU UMA consulta com o doutor Cassiano, ginecologista da família. Quando se acomodou na cadeira diante da mesa do especialista, a pequena luz ambiente que afagava o aposento refletiu a aflição nervosa e visivelmente apreensiva da recém-chegada. Suas mãos tremiam incessantemente.
Qual o problema, dona Dolores? perguntou o médico com inclinação paternal observando a sua ligeira oscilação de lábios.

Dona Dolores foi direta ao ponto, no rastilho dos subterfúgios que a acompanhavam como se um martirizante azagaio a ferisse por dentro.
Meu marido, doutor...
O que há com o Roberval? Não me diga que também está grávido?
Doutor... é sério!

Doutor Cassiano se abriu num gesto terno.
Desculpe. Queria quebrar o gelo. A senhora me parece muito agitada.
Estou... estou mesmo doutor... 

O especialista antes de continuar interfonou para a secretária, na recepção e solicitou água e café.  
Procure ficar calma. Relaxe.
O senhor se importaria se eu fumasse?
Se for um cigarro apagado, tudo bem. Atrás da senhora há um isqueiro sem pedras, uma caixa de fósforos com palitos previamente queimados e um cinzeiro lacrado. Enquanto pita, me conte do que se trata. Problemas com o bebezinho eu sei, de antemão, não prosperam. Inda a pouco verifiquei todos seus exames...

Dolores sorriu meio sem graça em vista de não poder acender o seu vício. Para despistar a impaciência, alisou a barriga enorme e guardou o maço de mata-ratos na bolsa.
Graças a Deus, doutor, nada com o bebê. Ufa!...
A bebê. É uma menina. Vamos, se abra... sou todo ouvidos.
Doutor, naquele dia em que o senhor conversou com o Roberval ele falou de alguma coisa, em especial?
Sobre o quê, exatamente?
Nós dois...
Olhe dona Dolores. Rolaram por aqui os mais variados assuntos, todos eles, evidentemente pautados a sua prenhes.   
Nada... fora?
Que me lembre, sinceramente...
Faça um esforço, doutor. É importante.

O esculápio interrompeu a conversa momentaneamente. Érica, a secretária, linda de fazer inveja, quebrou a rota do diálogo entre eles, batendo, de leve, na porta e, em seguida, enchendo, com seu aspecto facial gracejado, o ambiente limpo e impecável. Possuía os cabelos longos e sedosos, disciplinados às costas, até a linha onde corria o cinto do vestido. Seus passos se amoldavam ao longínquo como o vento soprando distante. Nas mãos, sobre uma bandeja inox, reluzia uma jarra com água gelada. Havia também copos grandes e dois pequenos, próprios para café com o líquido quente e a fumaça se volatilizando. De contrapeso, um vidro cheio de saquinhos de adoçantes e uma espécie de xícara sem asa, com sachês de açúcar.
A senhora aceita um cafezinho?
Sem dúvida, moça. Como o doutor não me deixa fumar... a saída é acender um café e tragar, aos poucos, a inópia da desventura que me importuna.  

Érica serviu a ambos numa habilidade ensaiada, comedida e refinada. Nessa elegância, alcançava a realeza de seus esgares mais angelicais.
  Açúcar ou adoçante, dona Dolores?
Nem um nem outro, minha filha. Amargo mesmo.

O clínico estranhou aquele gesto de sua paciente e se manifestou, ousado:
Sem açúcar, dona Dolores? A vida é tão cruenta e severa!...
Às vezes, meu caro doutor me dá ímpetos de mudar um pouco a rotina... o cotidiano sufoca a alma. Em certas ocasiões, tenho vontade morrer, cruzar os muitos umbrais que se assanham dentro de mim...!
Não diga uma barbaridade dessas. A vida é bela. Pense na criança que está vindo dentro em breve. Logo seu ventre se abrirá como desejos eloquentes se acendendo a um novo amanhã.  
Penso doutor. E como! Por vezes até demais. Para falar a verdade, ela não me sai da cabeça um instante sequer.

Num igual ligeiro em torno de si, a secretária se retirou, volvendo à sala contígua. Ficou no ar a compenetração do seu recato, o cheiro do seu perfume e o sorriso bonito que entrelaçava as curvas finas da sua tez brejeira. Antes de fechar a porta, a bela rapariga observou prestativa:
Se quiserem repetir água ou café, me avisem.

Galeno e paciente agradeceram com um aceno meneando as respectivas cabeças.
Após essa pausa intermediária, vamos regressar à prosa de onde paramos dona Dolores?
Sim senhor. Doutor, me entenda. Não quero, de forma alguma, tomar muito seu tempo. Sei que tem uma dezena de pacientes para atender. Todavia, insisto. Está acontecendo uma coisa de muito estranha lá em casa.
Estranha?
Exatamente, doutor.
Com o Roberval ou com a senhora?
Com meu marido.
Vamos entrar um pouco na sua intimidade, se me permite. Farei algumas perguntas. Básicas, corriqueiras. Se não quiser responder, entenderei o seu encafifamento.

Fique à vontade. O senhor, de certa forma, faz parte da família.
Agradeço de coração. Vamos em frente. Vocês... a senhora e seu marido, fazem... fazem sexo?
Nunca deixamos de praticar, doutor.
Ótimo. Nesses tempos favoráveis aos deleites do exercício sexual, ele a trata com carinho?  É atencioso?
Doutor... doutor... não é por aí. Escuta. Não posso mesmo fumar? Só uma tragadinha... prometo...
Tenha paciência. Respire. Esqueça o tabaco. O que eu quero saber, na verdade, acaso ele está fugindo ao... desculpe... ao tradicional “papai e mamãe?” Quero dizer, entenda... o Roberval partiu para outro tipo de relações com a senhora? Algo que a constranja ou incomoda de maneira pejorativa?
Em absoluto!
Não compreendo. Tenho pacientes que vêm aqui e reclamam de seus parceiros. As histórias são as mais cabeludas e escabrosas.

Cabeludas... e escabrosas, doutor? Explica essa história com mais detalhes. Fiquei deveras curiosa. Sabe como sou enxerida, pois não?

O deus da medicina se abriu luzidio num regalo franco.
Eles, os maridos, querem coitos e cópulas diferentes. Fora dos padrões normais. Entende o que estou dizendo?
Perfeitamente, doutor. O Roberval sempre fez as mesmas coisas antes e continua fazendo agora, após o crescimento da barriga. Aliás, desde o primeiro mês. Nada mudou, com relação aos nossos encontros na horizontal. Sou uma mulher liberal, o senhor me conhece. Não sou puritana. Tampouco tenho preconceitos quanto a fazer isso ou aquilo. Acho que entre quatro paredes a fêmea que ama o seu homem tem que ser... a puta... desculpe o palavreado... a vagabunda... a piranha... a mãe... nesse sentido, eu faço tudo... tudo o que o Roberval me pede. E vice-versa. De mais a mais, ele está nos cinquenta e eu acabo de completar vinte e oito...
Nessa altura do campeonato, tirando o uso da nicotina qual é o “xis” da questão?

A cantilante estancou o falar por breves minutos e se perdeu encarando fixamente o chão de giz. O asclépio polidamente esperou solidário, encostadiço na sua reclinável, ataviado num espaço à parte, como se divorciado, e então voltou à carga.
Pode se abrir. Nada que falarmos, sairá daqui.
É que agora, doutor, agora o Roberval resolveu... imagine... deu na telha de me pendurar no teto. Chegou a adaptar... nem acredito que estou aqui diante do senhor contando uma coisa dessas. Que mico!  Amoldou à laje do forro de nosso quarto, uns corrimões de ferros fundidos atrelados a umas barras presas com fortes parafusos. Só transamos... só fazemos amor pra valer, se eu estiver pendurada. Tenho que estar literalmente pendurada. Perdoe se me expressei erradamente, pendurada, dependurada... não sei qual o termo correto...
Deixa ver se entendi a sua colocação. Pendurada no teto?

É, doutor. Onde mais? No teto. O que me inibe de acender e fazer uma fumaça para entrar no clima. A princípio pensei que fosse uma tara, algum tipo de distúrbio, ou uma simples fantasia sexual, sei lá. Vocês, homens, depois de certa idade, têm dessas idiotices... viajam...
No teto? 
No teto, doutor. No teto. Sabe o que é um teto? Pois é como eu disse! Quer que eu faça uma pequena demonstração?  
Demonstração?
Solicite à Érica, sua assistente, que me traga, por obséquio,  uma escadinha. A propósito: seu ventilador está bem colocado? Não corre o risco de vir abaixo? Me penduro digo, me dependuro nele e...

No que falava a grávida se levantou, incontinente. O obstetra, boquiaberto e espantado, pediu que ela continuasse venerada no seu sossego.
Nada de demonstrações perigosas. Onde se viu ficar dependurada em um ventilador! Vou pedir mais um café. Aceita um copo de água antes?  
Doutor, me escuta, por favor.  Estou bem. Agora quem lhe pede calma sou eu. Relaxe.
Estou tranquilo. Por gentileza, me explique melhor essa história. 
Roberval disse que a ideia partiu do senhor.
De mim? Meu amigo pirou da cabeça? Vou encaminhá-lo a um psiquiatra.  
Acho que não resolveria a questão! Ele disse que o plano partiu da sua parte. Nesse caso, eu iria sugerir a vocês dois procurarem um competente em assuntos de doidos e desmiolados.
Dona Dolores, por tudo quanto é mais sagrado. Jamais diria ao Roberval para lhe pendurar... no teto... no aparelho de ar condicionado, ou em qualquer outro lugar... ainda mais levando em conta seu estado... e a sua barriga...
Só o que sei, doutor, é que a fantasia começou depois que vocês levaram o tal papo.  
Concordo, porém, nessa “troca de impressões” que tivemos, vamos colocar assim, apenas esclareci pontos obscuros. Matei algumas curiosidades e, por fim... por conclusão, disse a ele que depois do oitavo mês de gestação, as relações sexuais deveriam ser mais brandas, mais espaçosas e, de certa forma...  suspensas.

Dona Dolores nesse exato momento pulou de novo, do assento e gritou eufórica:
Bingo! Doutor, o senhor chegou aonde eu queria. Relações suspensas. É isso! Está aqui a ponta do fio que nos levará até o novelo.
Que fio? Que novelo? Do que a senhora está falando? Não estou conseguindo entender! Desenhe...

Risos.

Meu marido, doutor, não é estudado. O senhor sabe , nasceu, viveu e se criou na roça. É burro, no sentido bucólico, de pai e mãe. Mal sabe assinar o nome. Saiu do mato quando nos casamos. Nunca entrou numa escola.
E daí? Aonde a senhora quer chegar?
O senhor ainda não captou a mensagem? Está cristalino para mim, agora. Nas relações sexuais. Pense. Volte alguns dias atrás. O senhor não disse a ele, aqui mesmo, nesse consultório que elas, as nossas relações, deveriam ser brandas, espaçosas e especificamente S-U-S-P-E-N-S-A-S?!
Disse... entretanto... o que tudo isso, em minúsculo atalho, tem a ver com...
Doutor, “suspenso”, para o Roberval, é a mesma coisa que pendurado, ou dependurado. Posso, agora, pela nossa amizade acender um maldito cigarro?
Sem dúvida alguma, dona Dolores, sinta-se em casa. A propósito: me passe um dos seus. Os meus, por azar, acabaram.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do sítio “Shangri-la”, um lugar perdido no meio do nada. 27-2-2018

Colunas anteriores:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-