DONA
DOLORES MARCOU UMA consulta com o doutor Cassiano, ginecologista da família.
Quando se acomodou na cadeira diante da mesa do especialista, a pequena luz
ambiente que afagava o aposento refletiu a aflição nervosa e visivelmente
apreensiva da recém-chegada. Suas mãos tremiam incessantemente.
— Qual o
problema, dona Dolores? — perguntou
o médico com inclinação paternal observando a sua ligeira oscilação de lábios.
Dona
Dolores foi direta ao ponto, no rastilho dos subterfúgios que a acompanhavam
como se um martirizante azagaio a ferisse por dentro.
— Meu
marido, doutor...
— O que há
com o Roberval? — Não me
diga que também está grávido?
— Doutor...
é sério!
Doutor
Cassiano se abriu num gesto terno.
— Desculpe.
Queria quebrar o gelo. A senhora me parece muito agitada.
— Estou...
estou mesmo doutor...
O
especialista antes de continuar interfonou para a secretária, na recepção e
solicitou água e café.
— Procure
ficar calma. Relaxe.
— O senhor
se importaria se eu fumasse?
— Se for um
cigarro apagado, tudo bem. Atrás da senhora há um isqueiro sem pedras, uma
caixa de fósforos com palitos previamente queimados e um cinzeiro lacrado.
Enquanto pita, me conte do que se trata. Problemas com o bebezinho eu sei, de
antemão, não prosperam. Inda a pouco verifiquei todos seus exames...
Dolores
sorriu meio sem graça em vista de não poder acender o seu vício. Para despistar
a impaciência, alisou a barriga enorme e guardou o maço de mata-ratos na bolsa.
— Graças a
Deus, doutor, nada com o bebê. Ufa!...
— A bebê. É
uma menina. Vamos, se abra... sou todo ouvidos.
— Doutor,
naquele dia em que o senhor conversou com o Roberval ele falou de alguma coisa,
em especial?
— Sobre o
quê, exatamente?
— Nós
dois...
— Olhe dona
Dolores. Rolaram por aqui os mais variados assuntos, todos eles, evidentemente
pautados a sua prenhes.
— Nada...
fora?
— Que me
lembre, sinceramente...
— Faça um
esforço, doutor. É importante.
O esculápio interrompeu a conversa momentaneamente. Érica, a secretária, linda de fazer inveja, quebrou a rota do diálogo entre eles, batendo, de leve, na porta e, em seguida, enchendo, com seu aspecto facial gracejado, o ambiente limpo e impecável. Possuía os cabelos longos e sedosos, disciplinados às costas, até a linha onde corria o cinto do vestido. Seus passos se amoldavam ao longínquo como o vento soprando distante. Nas mãos, sobre uma bandeja inox, reluzia uma jarra com água gelada. Havia também copos grandes e dois pequenos, próprios para café com o líquido quente e a fumaça se volatilizando. De contrapeso, um vidro cheio de saquinhos de adoçantes e uma espécie de xícara sem asa, com sachês de açúcar.
O esculápio interrompeu a conversa momentaneamente. Érica, a secretária, linda de fazer inveja, quebrou a rota do diálogo entre eles, batendo, de leve, na porta e, em seguida, enchendo, com seu aspecto facial gracejado, o ambiente limpo e impecável. Possuía os cabelos longos e sedosos, disciplinados às costas, até a linha onde corria o cinto do vestido. Seus passos se amoldavam ao longínquo como o vento soprando distante. Nas mãos, sobre uma bandeja inox, reluzia uma jarra com água gelada. Havia também copos grandes e dois pequenos, próprios para café com o líquido quente e a fumaça se volatilizando. De contrapeso, um vidro cheio de saquinhos de adoçantes e uma espécie de xícara sem asa, com sachês de açúcar.
— A senhora
aceita um cafezinho?
— Sem
dúvida, moça. Como o doutor não me deixa fumar... a saída é acender um café e
tragar, aos poucos, a inópia da desventura que me importuna.
Érica
serviu a ambos numa habilidade ensaiada, comedida e refinada. Nessa elegância,
alcançava a realeza de seus esgares mais angelicais.
— Açúcar ou adoçante, dona Dolores?
— Nem um nem outro, minha filha. Amargo mesmo.
O
clínico estranhou aquele gesto de sua paciente e se manifestou, ousado:
— Sem
açúcar, dona Dolores? A vida é tão cruenta e severa!...
— Às vezes, meu caro doutor me dá ímpetos de mudar um pouco a
rotina... o cotidiano sufoca a alma. Em certas ocasiões, tenho vontade morrer,
cruzar os muitos umbrais que se assanham dentro de mim...!
—Não diga uma barbaridade dessas. A vida é bela. Pense na
criança que está vindo dentro em breve. Logo seu ventre se abrirá como desejos
eloquentes se acendendo a um novo amanhã.
— Penso doutor. E como! Por vezes até demais. Para falar a
verdade, ela não me sai da cabeça um instante sequer.
Num
igual ligeiro em torno de si, a secretária se retirou, volvendo à sala
contígua. Ficou no ar a compenetração do seu recato, o cheiro do seu perfume e
o sorriso bonito que entrelaçava as curvas finas da sua tez brejeira. Antes de
fechar a porta, a bela rapariga observou prestativa:
— Se quiserem repetir água ou café, me avisem.
Galeno
e paciente agradeceram com um aceno meneando as respectivas cabeças.
— Após essa pausa intermediária, vamos regressar à prosa de
onde paramos dona Dolores?
— Sim
senhor. Doutor, me entenda. Não quero, de forma alguma, tomar muito seu tempo.
Sei que tem uma dezena de pacientes para atender. Todavia, insisto. Está
acontecendo uma coisa de muito estranha lá em casa.
— Estranha?
— Exatamente,
doutor.
— Com o
Roberval ou com a senhora?
— Com meu
marido.
— Vamos
entrar um pouco na sua intimidade, se me permite. Farei algumas perguntas.
Básicas, corriqueiras. Se não quiser responder, entenderei o seu encafifamento.
— Fique à
vontade. O senhor, de certa forma, faz parte da família.
— Agradeço de coração. Vamos em frente. Vocês... a senhora e
seu marido, fazem... fazem sexo?
— Nunca
deixamos de praticar, doutor.
— Ótimo.
Nesses tempos favoráveis aos deleites do exercício sexual, ele a trata com
carinho? É atencioso?
— Doutor...
doutor... não é por aí. Escuta. Não posso mesmo fumar? Só uma tragadinha...
prometo...
— Tenha paciência. Respire. Esqueça o tabaco. O que eu quero
saber, na verdade, acaso ele está fugindo ao... desculpe... ao tradicional
“papai e mamãe?” — Quero
dizer, entenda... o Roberval partiu para outro tipo de relações com a senhora?
Algo que a constranja ou incomoda de maneira pejorativa?
— Em
absoluto!
— Não
compreendo. Tenho pacientes que vêm aqui e reclamam de seus parceiros. As
histórias são as mais cabeludas e escabrosas.
— Cabeludas... e escabrosas, doutor? — Explica
essa história com mais detalhes. Fiquei deveras curiosa. Sabe como sou
enxerida, pois não?
O
deus da medicina se abriu luzidio num regalo franco.
— Eles, os maridos, querem coitos e cópulas diferentes. Fora
dos padrões normais. Entende o que estou dizendo?
— Perfeitamente, doutor. O Roberval sempre fez as mesmas
coisas antes e continua fazendo agora, após o crescimento da barriga. Aliás,
desde o primeiro mês. Nada mudou, com relação aos nossos encontros na
horizontal. Sou uma mulher liberal, o senhor me conhece. Não sou puritana.
Tampouco tenho preconceitos quanto a fazer isso ou aquilo. Acho que entre
quatro paredes a fêmea que ama o seu homem tem que ser... a puta... desculpe o
palavreado... a vagabunda... a piranha... a mãe... nesse sentido, eu faço
tudo... tudo o que o Roberval me pede. E vice-versa. De mais a mais, ele está
nos cinquenta e eu acabo de completar vinte e oito...
— Nessa
altura do campeonato, tirando o uso da nicotina qual é o “xis” da questão?
A
cantilante estancou o falar por breves minutos e se perdeu encarando fixamente
o chão de giz. O asclépio polidamente esperou solidário, encostadiço na sua
reclinável, ataviado num espaço à parte, como se divorciado, e então voltou à
carga.
— Pode se abrir. Nada que falarmos, sairá daqui.
— É que
agora, doutor, agora o Roberval resolveu... imagine... deu na telha de me
pendurar no teto. Chegou a adaptar... nem acredito que estou aqui diante do
senhor contando uma coisa dessas. Que mico!
— Amoldou à
laje do forro de nosso quarto, uns corrimões de ferros fundidos atrelados a
umas barras presas com fortes parafusos. Só transamos... só fazemos amor pra
valer, se eu estiver pendurada. Tenho que estar literalmente pendurada. Perdoe
se me expressei erradamente, pendurada, dependurada... não sei qual o termo
correto...
— Deixa ver se entendi a sua colocação. Pendurada no teto?
— É,
doutor. Onde mais? No teto. O que me inibe de acender e fazer uma fumaça para
entrar no clima. A princípio pensei que fosse uma tara, algum tipo de
distúrbio, ou uma simples fantasia sexual, sei lá. Vocês, homens, depois de
certa idade, têm dessas idiotices... viajam...
— No
teto?
— No teto,
doutor. No teto. Sabe o que é um teto? Pois é como eu disse! Quer que eu faça
uma pequena demonstração?
— Demonstração?
— Solicite à Érica, sua assistente, que me traga, por
obséquio, uma escadinha. A propósito:
seu ventilador está bem colocado? Não corre o risco de vir abaixo? Me penduro — digo, me
dependuro nele e...
No
que falava a grávida se levantou, incontinente. O obstetra, boquiaberto e
espantado, pediu que ela continuasse venerada no seu sossego.
— Nada de demonstrações perigosas. Onde
se viu ficar dependurada em um ventilador! Vou pedir mais um café. Aceita um
copo de água antes?
— Doutor, me escuta, por favor. Estou bem. Agora quem lhe pede calma sou eu.
Relaxe.
— Estou tranquilo. Por gentileza, me explique melhor essa
história.
— Roberval
disse que a ideia partiu do senhor.
— De mim? Meu amigo pirou da cabeça? — Vou encaminhá-lo a um psiquiatra.
— Acho que
não resolveria a questão! Ele disse que o plano partiu da sua parte. Nesse
caso, eu iria sugerir a vocês dois procurarem um competente em assuntos de
doidos e desmiolados.
— Dona Dolores, por tudo quanto é mais sagrado. Jamais diria
ao Roberval para lhe pendurar... no teto... no aparelho de ar condicionado, ou
em qualquer outro lugar... ainda mais levando em conta seu estado... e a sua
barriga...
— Só o que sei, doutor, é que a fantasia começou depois que
vocês levaram o tal papo.
— Concordo,
porém, nessa “troca de impressões” que tivemos, vamos colocar assim, apenas
esclareci pontos obscuros. Matei algumas curiosidades e, por fim... por
conclusão, disse a ele que depois do oitavo mês de gestação, as relações
sexuais deveriam ser mais brandas, mais espaçosas e, de certa forma... suspensas.
Dona
Dolores nesse exato momento pulou de novo, do assento e gritou eufórica:
— Bingo! Doutor, o senhor chegou aonde eu queria. Relações
suspensas. É isso! Está aqui a ponta do fio que nos levará até o novelo.
— Que fio? Que novelo? — Do que a
senhora está falando? Não estou conseguindo entender! Desenhe...
Risos.
— Meu marido, doutor, não é estudado. O senhor sabe —, nasceu,
viveu e se criou na roça. É burro, no sentido bucólico, de pai e mãe. Mal sabe
assinar o nome. Saiu do mato quando nos casamos. Nunca entrou numa escola.
— E daí? Aonde a senhora quer chegar?
— O senhor ainda não captou a mensagem? Está cristalino para
mim, agora. Nas relações sexuais. Pense. Volte alguns dias atrás. O senhor não
disse a ele, aqui mesmo, nesse consultório que elas, as nossas relações,
deveriam ser brandas, espaçosas e especificamente S-U-S-P-E-N-S-A-S?!
— Disse... entretanto... o que tudo isso, em minúsculo atalho,
tem a ver com...
— Doutor,
“suspenso”, para o Roberval, é a mesma coisa que pendurado, ou dependurado.
Posso, agora, pela nossa amizade acender um maldito cigarro?
— Sem dúvida alguma, dona Dolores, sinta-se em casa. A
propósito: me passe um dos seus. Os meus, por azar, acabaram.
Título
e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do sítio “Shangri-la”, um lugar
perdido no meio do nada. 27-2-2018
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