Aparecido Raimundo de Souza
A
VELHINHA ENTROU NA PADARIA e se dirigiu à moça do balcão.
— Bom dia, princesa. Um copo de água, por
gentileza.
— Com ou sem gás?
— Nem um, nem outro. Torneirol, de
preferência.
— Como, senhora?
— Torneirol.
— Não entendi.
— Da torneira.
— Ah, desculpe. Ficarei lhe devendo.
— Por quê?
A balconista faz cara triste...
— Roubaram a torneira.
— Roubaram a torneira?
— Sim senhora. Está vendo a pia aqui
atrás de mim cheia de xícaras e pratos?
— Claro.
— E o buraquinho úmido, ainda escorrendo,
na parede, também dá para a senhora perceber?
— Sou velha, digo usada, pareço meio
caduca, mas ouço perfeitamente bem mocinha. De seis em seis meses consulto um
cardiologista.
Ambas caíram em francas risadas.
— Pois é. O desgraçado levou a porcaria
da torneira. —
A velhinha fez uma expressão séria de
espanto incontido.
— Quem foi o louco? Ou loucos?
— Ainda não sabemos. Foi um sujeito só.
Isso com certeza...
— Como a senhorita sabe?
— Um vizinho da casa em frente viu
quando o rapaz, um garoto aparentando uns quinze ou dezesseis anos, entrou...
— E o imbecil não chamou a polícia?
— Ele pensou que fosse o novo padeiro.
Como esse funcionário é menor e começaria hoje pela manhã... às cinco...
— Com tanta coisa para ser levada aqui de
dentro, tipo leite, coador, presunto, açúcar, trigo, sonhos, empadinhas,
quibes, vinhos, queijos, bolos, torradas, talheres, o sujeito perdeu tempo,
arriscou a ser preso ou morto para roubar um buraquinho de torneira?
— Senhora, o ladrão roubou a torneira,
não o buraquinho...
— Então... o que foi que falei? Desculpe
moça. Acho que é a senhorita quem não
escuta direito.
As duas se olharam como se medissem uma a outra.
— Por aí a senhora pode perceber como
andam as coisas. Nem as torneiras esses infelizes perdoam. Nem as torneiras...
— E por que o ladrão teria que perdoar
uma torneira? Acaso ela fez algum mal a ele?
— Modo de falar, senhora.
— Deve ser um encanador frustrado que
gosta de ver buraquinhos abertos. Para entrar aqui e levar uma torneira, bem,
moça, que se há de fazer? É o fim da
picada! Outro dia vi um homem perto de onde moro com meu neto roubando um poste
no meio da rua...
A atendente se quedou num sorriso bonito deixando à mostra
uns dentes brancos e perfeitos.
— No nosso caso aqui, não foi só uma
torneira, senhora. Ele roubou todas...
— Todas?!
— Sim, senhora, todas!
— Que doideira!...
— Além desta, ele carregou as outras
quatro dos chuveiros dos banheiros dos empregados e as cinco que serviam à
cozinha. Sem contar nas tampas...
— Tampas?
— Dos vasos sanitários. Não deixou uma
sequer!
— Estou pasma! Voltando às torneiras. O
que ele fez com o líquido?
— Líquido? Que líquido?
— Meu Deus, filha, o que saía dessas
torneiras.
— Claro, o líquido — Meu Pai do céu! Que
viagem. — O líquido, a água...
— Sim! A água?!
— Não sei exatamente. Seu Florentino
falou para o gerente que o ladrão fechou o registro geral.
— Quem é seu Florentino?
— Um dos donos.
— Sei, sei!
— Então o vagabundo deveria conhecer bem
o pedaço e o local exato do registro?
— Pelo que tudo indica, a senhora tem
toda razão...
— Ou alguém aqui de dentro deu uma
mãozinha a ele...
— Não havia pensando nessa
possibilidade. Mas quem se prestaria a tal sujeira? Seu Florentino é um pai para todas nós.
— Qualquer uma de vocês que trabalha
aqui. São em quantas?
— Oito. Eu e mais três agora pela manhã e, à
tarde, um batalhão de quatro chega para nos render.
— Pode ter sido uma delas ou...
— Ou...?
— Você mesma!
— Pirou da cabeça, senhora? Por que faria
isso? Trabalho aqui desde que inauguraram. Como disse e repito, seu Florentino
é um pai...
— Direi o que penso. Vai ver
se apaixonou por um rapaz. Esse rapaz especificamente que entrou aqui e... deu
a dica para ele... a rotina, os movimentos... mapeou o local do registro...
somando tudo, na expectativa de se darem bem...
— Acho que a senhora está de brincadeira
comigo. Eu jamais faria uma coisa dessas...
— Sei que não. Talvez
suas companheiras. Nunca se sabe...
A garçonete ficou séria e, por alguns instantes, perdeu a
voz.
A velhinha, todavia, voltou à carga.
— Esqueça tudo o que falei. São apenas
conjecturas. Gosto muito de ler romances
policiais. Princesa linda me mata uma curiosidade. E o
sistema de segurança? Vejo câmeras espalhadas e estrategicamente posicionadas...
— Essas geringonças ai não servem para
nada, dona. Nenhuma delas gravou coisíssima alguma...
— Como não gravou?
— Na hora que o sujeito arrombou o
cadeado da porta de ferro, adivinha o que aconteceu?
— O cadeado botou a boca no trombone?
— Senhora, pelo amor de Deus. Não
brinca. Faltou
luz!
— Ou foi cortada propositalmente...
— Quem sabe!
— Vendo a coisa pelo lado prático, puro azar
para o comércio e sorte para o meliante!
— Para quem?
— Para o meliante. Mesma coisa que
ladrão. Meliante, ladrão, gatuno, tudo farinha do mesmo saco...
— Nisso aí de meliante fecho com a
senhora. Quanto ao azar...
— O que tem o azar?
— Cairá em nossa “cacunda”. Vamos ter
serviço em dobro depois que as novas torneiras forem colocadas e a água voltar
ao normal.
— Que coisa mais sem sentido! O filho da
mãe roubar logo os buraquinhos?
— Não, senhora, as torneiras. O ladrão
roubou as torneiras... e as tampas...
— Eu sei moça, eu sei. Por acaso pensa
que sou surda? Passo a impressão de ser burra?!
— Desculpa senhora. Claro que não.
Mudando o rumo da prosa. A senhora vai querer alguma coisa? Um café, um suco,
um pão na graxa?
— Como é que é? Pão na graxa? Que merda é
essa? É para o cliente, logo que acabar de comer dar o fora escorregando?
Kikikikikikikikikiki...
A balconista finalmente se acendeu magnânima. Não pode
deixar de achar graça no que a simpática anciã acabara de dizer.
— Saiu sem querer, senhora...
— Esqueça mocinha. Vocês jovens, têm cada
linguajar. Traduz aí essa história de pão na graxa?!
— Pão na graxa é pão com manteiga.
— Então se fosse pão com margarina, você
chamaria a graxa de pasta, tipo essas que a gente passa nos calçados? — “Ei, fulana – diria você a uma de suas colegas de infortúnio
—, manda ai um pão com pasta de passar em sapatos. A freguesa
quer no capricho. Que venha brilhando...”.
A recepcionista novamente escancarou um riso dócil.
— A senhora é muito maneira... digo
engraçada.
Virando as costas, a setentona deixou o recinto, fagueira e
melodiosa. Da calçada ainda podia se ouvir a sua voz:
— “Pão na graxa... vou morrer e não
ouvirei tudo. Era só o que me faltava. Onde já se viu? Pão na graxa!
Kikikikikikikikikiki...”.
DIAS DEPOIS, A MESMA VELHINHA APARECEU ESTAMPADA NOS
JORNAIS. PRIMEIRA PÁGINA. DEU NO NOTICIÁRIO DO MEIO DIA. FORA PRESA EM
FLAGRANTE JUNTO COM SEU NETO DE DESSESSEIS ANOS. OS CRIMES: ASSALTOS E FURTOS
DE TORNEIRAS E TAMPAS DE PRIVADAS EM OUTROS COMÉRCIOS DO BAIRRO.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila
Velha, no Espírito Santo. 6-2-2018
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