Aparecido Raimundo de Souza
QUANDO
OLHEI PARA A MOÇA que acabara de subir e cruzar a catraca dentro do coletivo,
e que depois de pagar a passagem, viera se sentar de frente para mim, naquele
banco cara a cara, olho no olho, não pude deixar de espiar para seu corpo
escultural, suas pernas longas e bem-feitas, metidas num vestidinho azul
extremamente curto que deixava entrever, além da sua estrutura corpórea esguia,
tudo...
Tudo no sentido amplo, exceto o que
havia debaixo dele, entre o espaço das coxas e a barriguinha. Com essa visão
interrompida do paraíso, imaginei, em pensamentos marotos, aquele pedaço de
caminho estonteante totalmente despido do naco de pano que resguardava o mais
delicioso de todo o conjunto. A sua nudez fazendo provocações cênicas para a
plateia embasbacada das minhas conjecturas diabólicas.
Desde que se sentara, notei que a bela
colocara a mão esquerda no rosto, tampando o, parcialmente. Esse gesto me
chamou ainda mais a atenção e, então, agastado pelo inseto da curiosidade, vi o
que deveria permanecer oculto. Reconditoado e escondido. Um ponto nevrálgico
que ela não queria mostrar por constrangimento embaraçoso. Esse lado da face,
ou mais precisamente a boca, era suavemente oblíqua, o que decompunha seu
encanto e aconchegava um tremor mórbido em seus lábios.
Os olhos de um azul muito claro
pareciam extremamente tristes e melancólicos. O aleijo, talvez de nascença, ou
quem sabe, causado por alguma enfermidade curada pela metade, deixara uma
sequela vilipendiosa. Uma alteração anatômica que ela não conseguira engolir. E
isso, visivelmente manifesto, constrangia, sobremaneira, aquela boneca
impecavelmente linda e estupendamente aliciante.
No inopinado do meu rosto, uma sensação
de desespero bailava contragosteado. Divagando num terreno desconhecido, me
senti como um intruso por ter descoberto algo que não deveria. Foi como se
tivesse recebido uma sentença condenatória em decorrência de um crime que eu
não cometera por vontade própria.
Obcecada pelo opróbio, horrorizada pelo
ato de não se sentir à vontade, deduzi que não se contemplava feliz, embora o
albor da sua juventude gritasse alto demais e dissesse exatamente o contrario.
Diante desse fortuito, me tranquei num isolamento passivo. Ao breve e rascante
grito que engoli num repente, fingi não ter enxergado coisa alguma.
Tipo assim, como se tivesse levado um
pontapé multifacetado. Com a pancada, mergulhei, junto com seu ostracismo, num
ineditismo cenográfico, onde a realidade e a dramaturgia de uma função
inusitada se entrelaçaram. Pasmei dentro do chocado que se formou em mim e da
ofensa enrubescida que pensei ter deixado com ela.
O tempo todo da viagem, ela se calou em
seu terror, se aquietou, se amiudou a balbúrdia que sucumbiu funda em sua
covardia privada, retirada, solapada no regaço da sua quase exaustão. Nessa
pusilanimidade, quarenta minutos a bela elfa seguiu de rosto vedado.
Vez em quando trocava de mão, sempre
escondendo a marca vestigiosa e malfadada, que lhe tirava o viço e o agraço, e
a diminuía, na incontinência da dor e no apetite da agonia, o que evidentemente
a levava a se sentir acanhada, ou talvez, por essa razão, a se reputar excluída
e segregada das pessoas ao seu redor. O meu pedido de desculpas morreu na
vontade de quem armou as palavras e se esqueceu de botar para fora, na
tentativa de amenizar o que remédio não tinha.
Que desdita! Olhei para ela com ternura
paterna. Com um carinho especial. Tão linda e perfeita, fustigada nas vísceras
da sua insatisfação por uma deformidade à flor da pele. Imaginei que ela trazia
estampada, naquele estorvo, o pessimismo inerente à sua adversidade. Eu,
inconsequente e idiotizado, o fracasso obsoleto de não ter desviado a fuça para
outra direção e, de arremesso, o meu assombro ou, ao menos, disfarçado, às
pressas, meu descontentamento, tentando não chamar a sua vergonha para o atavio
lancinante daquela degradação desumana.
Todos nós (embora abarrotados de
artificialidades as mais diversas), temos pequenos mutilos que nos neutralizam.
Carregamos minúsculos defeitos, alimentamos enguiços e deformidades, sinais
malévolos, alguns visíveis, outros nem tanto. Todavia, quero crer, não importa
onde o nosso afogo esteja pujantemente manifesto, ou onde nosso embaraço se
faça terrivelmente revés.
O fato de sabermos que alguma
malformação, por menor que seja, ofusca o nosso verdor, seduz a nossa
exuberância, atormenta o nosso afetivo, apavora o nosso espírito e rouba a
nossa sensibilidade do ser feliz na sua melhor forma de expressão, apesar
disso, entendam (todos, não importa o problema), não podemos, jamais, nos
curvarmos ou nos diminuirmos a uma espécie de redenção fúnebre que habita, a
contragosto, em algum lugar dentro de nosso obscuro mais secreto.
Apesar de algumas injustiças ferirem a
nossa imagem, para as demais criaturas que nos cercam, ou as que necessitamos
conviver no dia a dia, a nossa personalidade, ainda que truncada, incompleta e
faltosa, de alguma beleza não vista por nós, essa nossa personalidade, esse
nosso retrato deve valer mil vezes mais que uma dúzia de bananas adquiridas no
supermercado. Em tempo algum manchemos a ternura no rosto do Eterno com as
lástimas inconsequentes dos nossos abre aspas “possíveis pecados insolúveis”
fecha aspas.
Na comburência do rosário de mazelas
que nos rondam, mister deixarmos fugir o que não presta. Emergencial esvairmos
do peito, do corpo, da alma, do sangue, as agruras. Permitirmos, sem mais
delongas, que esses travos, essas tribulações escorram para o ralo, como aguas
contaminadas e insalubres. Jamais nos acovardarmos diante do inverossímil,
tampouco deixarmos que o receio inclemente se fixe coeso, crie físico, se torne
indestrutível, massa pegadiça, contagiosa, aglutinante, ou no pior dos casos,
pestifere a graus homéricos.
Esse escrúpulo, essa suspicácia feroz,
necessita urgentemente ser banida, dilacerada, arrancada, extirpada de dentro
de nós. Fantasmas iracundos, por mais titânicos e agourentos que possam se
apresentar diante da nossa estuporação, não importa a circunstância,
desabitemos de nossas digitais, para que sumam e se percam ad aeternum. Declaremos combate-los e vencê-los. Que em
nosso trilhar, em nosso amanhã, sejam esses traumatismos, apenas nuvens
transitórias e passageiras.
Diante desse pó de areia que se acumula
em nossas vistas, e no mesmo segundo em que se esvai (à medida que limpamos no
escorrer por entre os lenços de papel), quando olhei para a moça que acabara de
subir e cruzar a catraca dentro do coletivo, e que depois de pagar a passagem,
viera se sentar de frente para mim, naquele banco cara a cara, olho no olho,
não pude deixar de espiar para seu corpo escultural, suas pernas longas e bem
feitas, metidas num vestidinho azul extremamente curto que deixava entrever,
além da sua estrutura corpórea esguia, tudo...
Tudo no sentido amplo, exceto o que
havia debaixo dele, entre o espaço das coxas e a barriguinha. Com essa quase
visão interrompida do paraíso, imaginei, em pensamentos marotos, aquele naco de
mau caminho totalmente despido do pedacinho de pano que resguardava o mais
delicioso de todo o conjunto. A sua sensibilidade humana.
A sua honradez, o seu amor pastoril,
bucólico e incondicional. Viajei por breves segundos no seu apego pelo próximo,
na sua altivez e, sobretudo, inventei asas, enleado na PAZ DE ESPÍRITO QUE ELA
CONDUZIA, GUIADA E SILENTE DENTRO DO CORAÇÃO.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do aeroporto internacional Salgado Filho,
em Porto Alegre – RS. 26-1-2018
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