domingo, 28 de janeiro de 2018

Danos colaterais

Vitor Cunha

Na sua crónica desta semana, Alberto Gonçalves menciona as explicações apontadas para estes fenómenos do #MeToo. O artigo é excelente, como sempre. Pessoalmente, não creio é que qualquer destas explicações mencionadas — não é o autor que as aponta, apenas enumera as que vão circulando — seja abrangente o suficiente para justificar seja o que for. A explicação que me parece mais plausível e abrangente é a da adolescência dos média modernos, substituídos pela estranha noção twitteriana e facebookiana de que cada pessoa é uma história, uma opinião num igualitário sistema de difusão do eu. Factos são batidos por anedotas, reportagens destituídas por alegorias emocionais e delações recompensadas com likes. Quando abrir a boca (ou escrever algo) do foro pessoal passa a ser visto como coragem, é natural que qualquer um deseje a sensação de ser reconhecido como corajoso.

Estando as redes sociais na sua adolescência, não é de admirar que estejam neste momento a experimentar o choque inevitável que é descobrirem que os pais tiveram sexo e que este foi animalesco, suado e cheio de fluidos causadores de náusea para idades tão precoces. Daqui a uns tempos, como é natural, as redes (e, consequentemente, os “media tradicionais”) esquecerão a ideia romântica de amor à primeira vista com cruzamento de olhares num sítio escuro e estarão, sem qualquer pudor, a chuparem-se mutuamente no carro dos pais num daqueles pinhais de sobreiros modernos. Até lá, termos que gramar. Não deixa de ser cómico que a preocupação dos pais se desvie de uma gravidez indesejada para a exposição aplaudida do eu em público.

E a vida continuará, como dantes. Exceto para os desgraçados acusados e condenados sem recurso na praça pública. São os chamados danos colaterais.
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias, 27-1-2018

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