terça-feira, 30 de janeiro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Conversa de botas batidas

Aparecido Raimundo de Souza

O SUJEITO ATRAVESSOU A RUA e veio diretamente em direção onde o Miguelito estava à espera de um ônibus que o levaria de volta para casa. Do nada, mais nem menos, o desconhecido sem se dar ao luxo de dizer boa tarde, mandou a indagação.  Uma meio besta, sem nexo.
— Amigo, desculpe a ousadia. Posso lhe fazer uma pergunta?
Miguelino antes de responder mediu o estranho de cima em baixo.
— Já fez. Mas tudo bem. À vontade. Em que posso ajudar?
— Desculpe de novo. Curiosidade. Você se acha um bom motorista?

— Sim.
— Sabe tudo sobre trânsito?
— Dá para o gasto.
— Saberia explicar a diferença de um motorista excelente para um condutor bom de roda, ou discernir um volante ruim de um chofer literalmente péssimo?

Miguelino pasmou. Era só o que faltava, àquela hora da tarde.
— Como assim? Que diferença é essa exatamente a que o prezado se refere?
— Bem. O que quero, na verdade saber, é o que discerne, ou o que faz a diferença entre um ás do volante, de um bom motorista para um condutor mais ou menos e aquele simplório “James” considerado extremamente porcalhão e relapso? 
Miguelito pensou um instante.  
— O tempo da carta dele. Eu acho...
— Carta? Que carta? 

— A carta de dirigir.
— Você quer dizer carteira?          
— Isso.
— Ou seria licença? Talvez você prefira chamar o documento de habilitação, pois não?

Miguelito manteve a alternativa que achava a mais conveniente. Insistiu, pois, com firmeza no que havia falado.  
— Carta.
— Carta nada tem a ver com volante — observou o desconhecido passando da discussão à semântica. — Ou tem?
— É uma das maneiras de expressar quem vive com as mãos na massa.
— Na massa ou no volante?

Miguelito deduziu que o cidadão não batia bem da bola.  Louco de pedra ou algo pior.
— Complicado, isso — disse evasivamente.
— Nem tanto... — insistiu o recém-chegado. Há quanto tempo o amigo dirige?
— O quê?  
— Há quanto tempo dirige?

Miguelito chutou um período qualquer, sem pensar. Que diferença faria?
— Dez anos.           
— Já bateu em alguém?
— Não. Fui batido.
— Atropelou alguém?
— Me atropelaram.

O anônimo riu dessa resposta.
— Atropelado? Por quem?

Miguelito mandou bala na primeira idiotice que lhe veio à mente.
— Por um cara de cavalo.


O estrangeiro se desfez num gesto engraçado. Sorriu matreiro.
— Por um cara de cavalo?  Como é lá isso?
— Um cara lá ia pela pista no mesmo sentido que eu, puxando um vavalo...
— Como? — Vavalo ou cavalo?

— Perdão. Quiz dizer cavalo?
— Pensei tivesse ouvido errado. Lembra que tipo de cavalo?

Miguelito começou a perder a paciência. “Que porra de homem chato!”.
— De quatro patas.

O outro não deixou por menos. Insistiu:
— E ele tinha rabo?
— Sim. Um bem comprido. Parecia nervoso.
— Quem parecia nervoso? O homem ou o cavalo?

Miguelito pirou na batatinha. De vez. Decididamente aquele não seria seu final de tarde de voltar para o aconchego do lar em paz e sossegado.
— O rabo!

O heteróclito coçou a orelha esquerda.
— Não entendi a colocação...
— Eu explico. O rabo do bicho não parava de se abanar.
— Amigo, um detalhe. Bicho ou animal?
— Os dois.
— E o elemento que conduzia o cavalo, lhe prestou assistência?

Miguelito nessa altura do campeonato concluiu que efetivamente o sujeito gozava da sua pessoa. Antes de mandar o infeliz para os quintos, resolveu se fazer de desentendido. Aquiesceu pressuroso:
— Ele não me deu nenhuma assistência.  O cavalo sim. Foi gentil, amável, cortês. Nunca vi igual. Com todo cuidado me acomodou nas costas dele e marchou a todo galope para o pronto socorro. Seu dono ficou sentado no meio fio, a cabeça enterrada nas mãos. Parecia chorar a criatura.
— Sei, sei... e no pronto socorro, como se deu a chegada?
— Um corre-corre danado.
— Como assim? 

Miguelito não deixou a prosa esfriar. Levou na gozação. A mesma que parecia vir de seu interlocutor.  
— O cavalo, suado em bicas, entrou direto na área da recepção.  Correu até o balcão e lascou uma boa tarde à moça. Nessa hora, as pessoas que estavam ali, aguardando, ficaram apavoradas, espantadas e boquiabertas...
— Imagino! Continue...
— O tumulto se agigantou quando o pobre quadrúpede, furioso com a tal da atendente, acredite meu amigo, ela permaneceu alguns minutos totalmente congelada. Estatelada, como se tivesse visto o tinhoso.  O cavalo, agoniado e aflito, deu uma relinchada básica, empinou estabanadamente para trás e quase não conseguiu me suster em seu colo. Não fui ao chão, por pouco.
— Colo? Você disse colo?!

— Lombo. Lombo. A debandada, nesse ponto, se generalizou. Não ficou viva alma na mesa da admissão, para contar história. O segurança de plantão pulou por uma janela e levou junto uma funcionária que passava pano no chão. Ah, havia um senhor de cadeira de rodas...
— E ai? Vá em frente, complete...
— Esse senhor caiu de bunda no cimento.
— Como? Não estava na cadeira de rodas.
— Por certo. Levada pelo medo, ou sei lá o que, a cadeira saiu em corrida desenfreada, arrastando, junto um balão de oxigênio.
— Inacreditável!
— E não parou ai.
— Teve mais?

Miguelito procurou causar impacto no que diria a seguir. Fez pose. Extremamente sério e compenetrado, lembrava uma lagartixa solitária numa parede esverdeada.
— Claro. Alguém lá fora chamou a policia.
— Sim?
— O guarda chegou, e como não tinha ninguém pra fazer perguntas, um dos militares, ato contínuo, prendeu o cavalo e eu tive que ir junto, na viatura, para prestar esclarecimentos na delegacia.
— Credo, que loucura! — E aí, continue. — Ao chegar à frente da autoridade...?
— Não me lembro de mais nada.
— Como assim, não se lembra de mais nada?!

Miguelito trouxe à baila a carta que escondia na manga.
— O despertador, na cabeceira da minha cama, começou a tocar... e eu, sobressaltado, acordei.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 30-1-2018

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