terça-feira, 23 de janeiro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Gume açorado

Aparecido Raimundo de Souza

NA FARMÁCIA POPULAR, João Vitor e a amiga Bárbara se encontram casualmente na hora de pegarem uma senha para atendimento. Entram na fila. Trecho relativamente enorme até o balcão onde apenas uma funcionária embaixo de ofensas e xingamentos tenta dar vazão à galera enfurecida.  Indiferentes ao que está rolando em derredor, o casal entabula um papo informal.

- Nossa, “miga”, quanto tempo! A que se deve esse seu sumiço?
- Voltei a trabalhar com o Padilha. Não estou tendo tempo nem de me olhar no espelho. E você, João Vitor, o que anda urdindo?
- Nada de novo, Bárbara. Continuo vendedor na loja de sapatos. Por falar nisso, chegaram alguns modelitos que são a sua cara. Aparece por lá.
- Prometo que a qualquer hora darei o ar da graça.
- Vou esperar. Mudando de pau pra cavaco, Bárbara, mata uma curiosidade que está me tirando o sossego: qual o segredo que aquele desengonçado do Padilha carrega que arrebanha tantas mulheres bonitas para seu lado?

- Não faço a menor ideia João Vitor. Talvez a elegância e a humildade. Uma coisa lhe asseguro como certa. O cara tem borogodó. Sem mencionar a inteligência e o charme. Inconfundíveis!
- Fala sério, Bárbara. Charme é o que ele não tem. Mas tipo assim: o que me instiga a pulguinha a coçar atrás da minha orelha, é que algo enigmático e irresistível faz dele um cabra popular. Um gentleman. A que você atribui todo o sucesso do sujeito? Cá entre nós. Embora o moçoilo não tenha arroubos de deleites e a formosura passou ao largo, sem dúvida alguma a criatura é um gato, miauuuuuuuuuu... apesar do fato de ser careca, baixinho e barrigudo...

- Não sei explicar, João Vitor. Sinceramente. Todavia, concordo com você. Padilha tem algo diferente, um ingrediente raro que realmente deixa todas nós, mulheres, de cabeças às avessas. 
- Ei, pera lá. Quase me esquecia. Você já o namorou, anos atrás. Deve ter noção que parangolé rola misturado ao babado que faz dele um ser tão popular. Estou certa, quero dizer, certo?

- Ei, seu futriqueiro. Não namorei. De onde tirou essa maluquice? Somos só amigos.
- Amigos, Bárbara?
- Sim, João Vitor. Conheço o Padilha desde os doze anos.
- Então... tempo suficiente para...
- Isso não quer dizer nada, João Vitor. Nunca pintou um clima.
- Confessa “miga”. Nem um beijinho, ou uma fungada mais profunda no pé do cangote solitário?
- Nada, meu prezado. Nada.

- A Angélica Zarolha outro dia apareceu lá na loja. Enquanto lhe empurrava uns pares de sapatos e cuidava de bater a minha meta mensal, ela veio com um papo esquisito...
- João Vitor, a Angélica é uma despeitada. Não é à toa que capenga de um olho.
Ambos caem em estrondosa gargalhada.

- Tá legal, Bárbara. Vamos esquecer a Angélica. O que me diz da Andreia Turca? Ela também se abriu feito um paraquedas em insinuações...
- Outra safada insossa. Sem gosto, sem tempero. Sem cor, sem brilho. Completamente sem noção. Além de mal-amada, só tem vento e merda na cabeça. Não sei se você tem conhecimento: o apelido dela lá no nosso bairro é “Privada sem tampa”.

- Agora é que pirei de vez, Bárbara. Ela também comentou algo a respeito de você e Padilha. Só comentou, veja bem. Fez menção a um casinho antigo! Tão antigo, mas tão antigo que se fosse averiguar, de pronto, esse casinho, o mesmo estaria andando de bengala. Parece que, na época, o Padilha largou dela e grudou em você. Literalmente. Coisa do tempo do ginásio... procede?
- João Vitor, deixe de ser esse grandessíssimo filho da mãe. Como pode ser tão nojento? Acreditar em fofocas, em picuinhas? Claro, que burra eu sou! Pela sua fuça!...

- O que tem minha tez de gata no cio, ratificando de gato no cio?
- Sempre soube que você alimenta uma quedinha por ele. Como o Padilha não é chegado abre aspas, “em homens”... seu desejo ficou pra escanteio. Fecha aspas.
- Agora magoei pra valer. Bárbara. Roxeei geral. Não precisava pegar tão pesado.

- Apesar de saber que você o queria acorrentado aos lençóis de sua cama, nunca abri a boca para falar com terceiros.
- Desculpe “miga”. Foi mal.
-Esquece João Vitor. Vamos mudar o rumo da prosa.

- Ok! E o Getúlio Malhadão?
- O que tem o Getúlio Malhadão?
- Barbara, embora você esteja sumida do meio da galera, e evitando se esbarrar com nossos amigos do grupo lá do bairro, tenho visto você e Getúlio Malhadão juntinhos. Pra lá e pra cá, pra cima e pra baixo. Inclusive, desculpe a ousadia e a indiscrição.  Enquanto estamos aqui, jogando conversa fora, pagando todos os pecados nesta fila enorrrrrrrrrrme, ele te mandou trocentas mensagens aí no celular. Evidentemente devem permutar e-mails carinhosos, fotos via Instagram e etc. Sem contar que ontem, está lembrada de ontem? Flagrei vocês no restaurante do Bira-Bira, almoçando. Mas fiz olhos de cega, que coisa, de cego. Tipo assim, nossa justiça sem visão. Passei batida... passei batido.

- João Vitor, sua bicha sórdida e desprezível. O que está querendo insinuar com esse ar de ironia? Desembuche seu encardido. Não esqueça que voltei a trabalhar com o Padilha. Ele e Getúlio Malhadão são primos.
- Eu sei, eu sei...

- Se eu não trabalho, não tenho quem pague minhas contas. E se uma fofoca, por pequena que seja, chega aos ouvidos deles... estou no olho da rua. Pare de ver chifres em cabeça de cavalo.
- Tenha certeza, amiga, de que não estou vendo nenhum chifre na cabeça de cavalo.
- Jura que não?
- Messssssssssmo...!

- Fale João Vitor. Seja macho. Digo, seja uma boneca de verdade. Honre essa calça queima rosca que veste. Deixe de disse me disse. Coisa de puta da zona.
- Calma “miga”. Não precisa se exaltar. Fiz apenas um comentário.
- Por sinal bastante maldoso. E não só maldoso, asqueroso. João Vitor, entenda. Jamais pensei que você, com seus mexericos e bisbilhotices chegasse a esse ponto. 
- Não era intenção te magoar, Bárbara.

-Tudo bem, João Vitor. Página virada. Bola pra frente.
- E aí, que remédio pretende pegar?
- Um para minha avó Zulmira. Nas farmácias comuns, muito caro. Os preços ferem os bolsos.
- O que tem a sua avó, Bárbara?
- Alzheimer. E você, a que veio?
- O meu é mais complicado. Vim atrás da droga do coquetel antirretroviral contra a AIDS. São três ou quatro comprimidos para serem tomados todos os dias. Não conta pra ninguém. Não espalha Barbara. Lá na nossa comunidade, ninguém sabe. Eu sou soropositivo.

- Nossa mãe santíssima João Vitor! Não sabia. Credo!
- Pois é, “miga”. Coisas da vida... fazer o que né? Infelizmente terei que conviver com essa realidade. Deixa te falar. Lembra da Juliana do André?
- Claro. Minha amiga. Estudamos juntas...
- Sabia que ela está tendo um affaire com o Simoninha da padaria?
- Puts grilo, João Vitor! Você não se emenda mesmo. Deixa de cuidar da vida das pessoas. Será que não sabe o que é ter senso do ridículo? Olhe para seu próprio rabo. Esqueça a vida alheia...
- Bárbara, me perdoa de novo... escapou.

- Nada a perdoar.  Aceita o conselho de uma boba, uma idiota que lhe quer bem? Cuide mais de você. Principalmente agora, com essa doença infame. Repudie os falatórios, se aparte das maledicências que giram em torno de sua vida. Pense em Deus, ore, peça proteção. Apegue aos dias que lhe restam -, e espero que sejam muitos -, a alguma coisa que realmente valha a pena...
- Ta bom, Bárbara. Vou tentar... obrigada pela força.
- Faça isso. Promete?
- Prometo! Ah, miga, sabia que a Marília, esposa do doutor Cardoso foi pega em trajes menores com o amante dentro de um...
 - João Vitor, pelo amor de Deus. Olhe pra frente.  É a sua vez no balcão. Anda, sujeito. Não atrapalhe os demais. Falamos outra hora. Vai, vai...
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do bairro da Praia de Belas, em frente à sede do TRF da 4ª Região de Porto Alegre - RS. 23-1-2018

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